Quando o Tigre paga o Pato: contribuições jurídicas para a boa compreensão das recentes operações policiais contra apostas clandestinas

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Nas últimas semanas a imprensa tem noticiado amplamente uma sequência de operações policiais em diversos estados a respeito de práticas supostamente clandestinas e ilegais de apostas. De acordo com as matérias, essas operações tomariam por base o “Jogo do Tigre”, que estaria sendo supostamente oferecido em redes sociais e aplicativos de mensagens e causando prejuízo a milhares de pessoas.

Diante disso, muitos se apressaram em condenar o “Jogo do Tigre” e usá-lo como exemplo de malefício das apostas para argumentar contra a recente abertura do mercado de jogos on-line no Brasil. Uma análise técnica e jurídica mais atenta, contudo, pode revelar que o que tem havido é uma grande confusão e até má compreensão sobre fatos e regras jurídicas aplicáveis aos jogos.

Neste artigo, o que se busca é trazer algumas contribuições técnicas e jurídicas sobre esse jogo e sobre os ilícitos penais que têm sido suscitados, para que o leitor possa compreender melhor as notícias e firmar suas próprias conclusões de maneira mais informada.

O que é o Jogo do Tigre?

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que o jogo conhecido no Brasil como “Jogo do Tigre” é oficialmente denominado Fortune Tiger e foi desenvolvido pela empresa Pocket Games Soft, mais conhecida como PG Soft. Trata-se de uma das maiores desenvolvedoras de jogos online e offline do mundo, com sede em Malta, e que possui licença dos reguladores de Malta, Gibraltar e Reino Unido.

A temática do jogo foi concebida a partir de uma conhecida lenda chinesa que atribui a um tigre a vitória sobre outras três feras que ameaçavam a vida na Terra e que teria sido condecorado pelo Imperador com três linhas horizontais na fronte. A dinâmica do Fortune Tiger é simples: ele é formado por uma grelha de três linhas, com três espaços (slots) para símbolos ou figuras em cada uma delas, dentro da qual podem aparecer vários símbolos. O objetivo do apostador é combinar três símbolos iguais em uma das linhas para ganhar prêmios que podem chegar a 2.500 vezes o valor apostado.

Tecnicamente, portanto, o Fortune Tiger nada mais é do que um slot game virtual, cujo funcionamento é praticamente idêntico ao de qualquer jogo do tipo “caça níqueis”. Por ser produzido por uma empresa licenciada em pelo menos três países, esse jogo em si nada tem de ilegal ou irregular. A condição básica é que ele seja oferecido a partir de sítios eletrônicos sediados naqueles três países, pela própria empresa, ou, então, por outras empresas, via contrato ou sistema de afiliação com a PG Soft, em países onde elas tenham licença para operar.

O Jogo do Tigre é ilegal no Brasil?

Sendo um slot game clássico, em que o resultado é determinado exclusivamente por um gerador randômico de figuras ou símbolos, a dinâmica do Fortune Tiger pode, em tese, se enquadrar no conceito de aposta sobre jogo on-line, previsto no art. 2º, inciso VIII, da Lei nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023. Portanto, há evidente respaldo jurídico para que ele seja ofertado no Brasil, com uma condição: que o operador seja previamente autorizado a operar em nosso País pela Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda ou, ainda, que atue como concessionário de serviço de loteria estadual.

Decorre imediatamente daí a conclusão de que o jogo, em si, nada tem de irregular ou ilegal, porque sua dinâmica de funcionamento, em tese, se adequa a uma das espécies de jogo previstas na legislação brasileira. A ilicitude somente se configura se a oferta desse jogo se der no Brasil (ou seja, por empresas constituídas em território nacional ou sítios eletrônicos com domínio nacional) sem a necessária autorização do governo brasileiro. Apenas nessa hipótese estaria configurada a contravenção penal de “jogo de azar”, prevista no art. 50, §3º, alínea “a”, da Lei de Contravenções Penais.

Então, por que temos visto tantas operações policiais a respeito do assunto?

A polêmica em torno do Fortune Tiger tem se estabelecido basicamente por duas razões: a primeira delas é a má compreensão sobre um princípio básico do direito, que é o da territorialidade; e a segunda é a oferta fraudulenta de apostas usando irregularmente a marca ou o mote desse jogo no Brasil, que tem levado muitos a acreditar, de forma equivocada, que o problema está no jogo em si.

Quanto ao primeiro ponto, é preciso que fique claro que a lei brasileira só é aplicável aos atos e negócios jurídicos praticados no Brasil. Logo, se o Fortune Tiger (ou qualquer outra modalidade de jogo ou aposta) for oferecido por sítio eletrônico de empresa devidamente licenciada em outro país, não há, a rigor, qualquer ilicitude, e, por conseguinte, não há que se falar em punição penal ou administrativa dos agentes envolvidos. Qualquer iniciativa das autoridades de persecução penal nesse sentido será inócua.

Já quanto ao segundo ponto, a questão se torna mais complexa e requer muito mais atenção do leitor. É preciso separar o joio do trigo, de modo a investigar se, de fato, o que está sendo oferecido é mesmo o Fortune Tiger (isto é, o jogo da PG Soft que é licenciado em outros países e pode vir a ser licenciado no Brasil) ou um mero simulacro ou emulador dele. É justamente aqui que se revela o maior risco de confusão e, por conseguinte, de uma condenação precipitada e injusta de um jogo que a princípio é totalmente legal.

Até agora, o que temos visto nas operações policiais são acusações de que pessoas estariam oferecendo oportunidades de apostas usando indevidamente a marca do Fortune Tiger através de versão demo do jogo ou criando simulacros dele para, supostamente, aplicar golpes em apostadores incautos. Se isso for confirmado pelas investigações, o problema não será o Fortune Tiger, mas sim a conduta dos que, de forma ardilosa, estejam simulando ou talvez fraudando esse jogo para obter vantagem ilícita.

Em termos penais, os elementos de investigação até aqui divulgador parecem apontar muito mais na direção de contravenção de jogo de azar, associada a possível estelionato (previsto no art. 171 do Código Penal). Isto porque, o mecanismo de aposta, embora alardeado como se “Jogo do Tigre” fosse, nada mais seria do que uma cópia, imitação ou mesmo uso indevido da marca do jogo mundialmente conhecido. Sob essa ótica, e a depender das circunstâncias de cada caso, seria possível, em tese, se cogitar também da prática de contrafação, que consistiria aqui em reprodução não autorizada e fraudulenta de programa de computador, atraindo a incidência do art. 5º, inciso VII, do art. 7º, inciso XII, e do art. 104, todos da Lei de Direito Autoral.

Conclusão: o Tigre está pagando o pato

Diante do exposto, chega-se à conclusão de que os elementos até aqui divulgados a respeito das operações policiais das últimas semanas não tem qualquer relação direta com o “Jogo do Tigre” em si. Pelo contrário, as investigações parecem apontar na direção de práticas supostamente fraudulentas que apenas usam, sem autorização, o nome ou a marca do Fortune Tiger para veicular a oferta de apostas em versão demo por mecanismos ou sistemas não autorizados no Brasil.

É claro que nenhum juízo conclusivo se pode fazer até que cada investigação possa ser concluída e avaliada pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário. Mas, até aqui, os elementos tornados públicos parecem apontar na direção de que, como se diria popularmente, o Tigre está é pagando o pato por uma confusão em que acabou sendo injustamente envolvido.

Fonte: BNL Data

ARTIGO | BNL Data e Games Magazine Brasil | As semelhanças entre a regulação das “bets” e o setor bancário

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Como é de conhecimento geral, desde o final do ano passado, o Brasil possui legislação própria destinada diretamente ao setor jogos e apostas, no âmbito daquilo que se convencionou denominar como “apostas de quota fixa”, expressão originariamente lançada na Lei nº 13.765, de 2018.

Nos termos da legislação vigente, as apostas de quota fixa poderão ter por escopo (i) eventos de temática esportiva ou mesmo (ii) sessões virtuais de jogo on-line, conforme art. 3º, da Lei nº 14.790, de 2023.

Desde então, o governo brasileiro – por meio da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda (SPA/MF) – tem apresentado uma série de orientações normativas voltadas especificamente para esse segmento complexo e altamente sensível, que desempenhará papel econômico fundamental para o Brasil, impulsionando o desenvolvimento de um setor até então inexistente em nossa economia.

Para o seu regular funcionamento, contudo, é fundamental que os apostadores disponham dos recursos suficientes para permitir a materialização de seus palpites, de modo que, em caso de êxito, venham a receber os valores dos prêmios atrelados.

Em função dessa questão, o regulador parece efetivamente preocupado com a possibilidade de desenvolvimento de transtornos e de práticas relacionados à ludopatia por parte dos apostadores, que pode conduzir a graves consequências financeiras, como o endividamento, perda do emprego e até de bens por parte dos apostadores que cheguem a esse nível de transtorno.

Talvez por esse motivo, tem sido possível observar uma interessante característica no modus operandi adotado pela SPA/MF ao regular o setor de jogos e apostas no Brasil, em questão, isso porque (em uma série de aspectos) tem passado a se valer de mecanismos de ordem técnica muito semelhantes àqueles adotados habitualmente no âmbito do SFN, em especial de medidas de controle e supervisão já aplicadas pelo Banco Central (BC).

Em uma rápida consulta, foi possível observar que grande parte das políticas indicadas na Portaria Normativa SPA/MF Nº 615, de 2024, foi extraída da Resolução CMN nº 4.557, de 2017, a qual dispõe sobre a estrutura de gerenciamento de riscos para instituições sujeitas à fiscalização do Banco Central.

O Gerenciamento de Riscos de Liquidez para as BETS

A Portaria Normativa SPA/MF Nº 615, de 2024, estabeleceu a obrigatoriedade de os agentes operadores (“BETs”) instituírem políticas de gerenciamento de riscos de liquidez, terminologia muito utilizada no âmbito do mercado financeiro para se referir aos problemas que as instituições financeiras podem vir a ter que enfrentar durante o exercício de suas funções.

De maneira simplificada, o risco de liquidez pode ser compreendido como aquele proveniente da impossibilidade de se ter recursos disponíveis a tempo e modo necessários aos clientes. Na atividade bancária, por exemplo, é o risco de não se ter recursos disponíveis para o momento de saque de recursos em conta corrente, ainda que tal instituição disponha de patrimônio suficiente a saldar a operação.

Desse modo, portanto, liquidez é sinônimo de “dinheiro disponível”. Afinal, quem é proprietário de determinando imóvel possui um ativo financeiro correspondente ao valor de avaliação desse bem (valor de avaliação). Porém, não significa dizer que também possua efetivamente o capital “em mãos”, algo que só seria possível em caso de alienação do bem.

Trazendo esse conceito para o mercado em comento, portanto, pode-se dizer que o “risco de liquidez” aplicável ao mercado de apostas passa, sobretudo, pela eventualidade de aportes realizados ou prêmios percebidos não se encontrarem efetivamente à disposição dos apostadores nas denominadas contas transacionais e, por conseguinte, para recebimento na conta cadastrada dos apostadores.

Segundo a SPA/MF, as “BETs” precisarão formatar estrutura de gerenciamento de riscos de liquidez para sua operação. Essa política precisará conter metodologia precisa para aferição de “limites de exposição”, bem como processos internos que sejam capazes de monitorar e mensurar a alternância de risco em horizontes de tempo diferentes, inclusive no âmbito de um mesmo dia (art. 8º, incisos I e II).

Isso leva à clara conclusão de que a SPA/MF está em busca de estabelecer parâmetros de regulação prudencial para o setor de apostas no Brasil, a se utilizar um pouco da experiência já adquirida pelo BC com ferramentas semelhantes.

Limites de exposição: nível de comprometimento por apostador ou por volume de apostas?

No âmbito do SFN, o limite de exposição é um denominador utilizado para definir qual o grau de exposição uma instituição deverá ter frente a um determinado cliente, com vistas à diminuição de riscos até mesmo de quebra. Tal aplicação decorre das recomendações provenientes do Comitê de Basileia para Supervisão Bancária.

Em matéria bancária, por exemplo, vigora a regra de que o LEP (Limite de Exposição por Cliente) deverá, na maioria dos casos, ser equivalente a 25% do Patrimônio de Referência da instituição financeira (art. 3º, Resolução CMN 4.667, de 2018).

No âmbito da SPA/MF, não ficou muito claro se o limitador de exposição se dará em relação ao apostador ou ao volume de recursos apostados de maneira geral. Ademais, a SPA/MF – ao menos até o presente momento – também não indicou qual seria o percentual ou volume máximo de exposição a ser observado.

Segundo apontado na PORTARIA SPA/MF Nº 615, de 2024, o limite de exposição dos agentes operadores de apostas deverá ser tomando em relação ao seu Patrimônio Líquido (PL), apurável a partir do último Balanço Patrimonial disponível (BP).

Ou seja, a cautela a ser adotada pelo Operador deve ser (a) em relação ao volume máximo de apostas recebidos por um mesmo apostador ou (b) em relação ao número de recursos em movimentação/circulação por meio de apostas, sob o ponto de vista geral, à luz de seu PL?

Esses são questionamentos e pontos que a SPA/MF ainda precisará esclarecer com maior riqueza de detalhes.

Plano de contingência de liquidez e a identificação de “recursos adicionais”

A SPA/MF também fez referência expressa à necessidade de elaboração de plano de contingência voltado ao enfrentamento de situações de estresse de liquidez por parte do agente operador de apostas. O plano deverá conter indicação de fontes adicionais de recursos, o nível de responsabilidades dos envolvidos e quais os procedimentos a serem adotados para superação da crise de liquidez.

Novamente, a utilização de planos de contingência (tanto para estresses de liquidez como para estresses de capital) remonta à idêntica previsão estipulada na Resolução CMN 4.667, de 2018, para as instituições financeiras.

Além disso, preconiza a SPA/MF que deverá o agente Operador relacionar e identificar fontes adicionais de recursos, considerando-se para tal finalidade os (i) recursos existentes em conta proprietária, bem como (ii) limites de crédito (pré-aprovado) para empréstimos com fim de composição de capital de giro e (iii) outras fontes líquidas de recursos disponíveis a qualquer tempo aos Operadores.

Prevenção à Insolvência: constituição de “Reserva Financeira”

Outro elemento interessante diz respeito ao mecanismo criado pela SPA/MF para proteger os apostadores diante de eventual situação de insolvência do operador de apostas, funcionando como espécie de um “fundo garantidor”.

A reserva deverá ser constituída no valor de 5 milhões de reais e mantida em conta perante instituição financeira sob a forma de títulos públicos federais, não se confundido com os valores mantidos nas contas transacionais e proprietária.

A Reserva Financeira funcionará quando o Plano de contingência não dispuser de outras fontes alternativas para saldar créditos dos apostadores, desde que o aceso a tais recursos seja previamente autorizado pela SPA/MF.

Para que mantenha sua finalidade, a cada utilização, a Reserva Financeira precisará ser recomposta para atender ao saldo mínimo desejado (R$ 5 milhões). Além disso, é vedada a utilização desses recursos para finalidade diversa que não seja o pagamento de prêmios aos apostadores.

O único proveito que os Operadores poderão ter sobre a Reserva Financeira é em relação aos rendimentos anuais proporcionados pelos títulos públicos aplicados, cuja quantia poderá ser objeto de resgate.

Fonte: BNL Data | Games Magazine Brasil