ARTIGO | Reflexões sobre a adequação do jogo do bicho on-line à Lei 14.790/2023

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Na última semana o mercado brasileiro foi surpreendido pela edição da Nota Técnica SEI nº 3826/2024/MF, divulgada pela Subsecretaria de Monitoramento e Fiscalização da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda – SPA/MF que “orienta a impossibilidade de certificação de jogos on-line da modalidade lotérica apostas de quota fixa que adotem regras ou denominação relacionada ao ‘jogo do bicho’”

A conclusão da SPA foi no sentido de que, “por ser uma modalidade lotérica ilícita e distinta da modalidade lotérica aposta de quota fixa, de que tratam a Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, e Lei nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023, os agentes operadores de loteria de apostas de quota fixa não podem ofertar jogos on-line que adotem regras próprias do jogo do bicho”. A SPA foi além: afirmou, no documento, que esse entendimento deve ser observado pelas entidades certificadoras “mesmo para o caso de jogos on-line que já tenham sido certificados previamente ao encaminhamento desta Nota Técnica”.

A questão, contudo, merece uma reflexão mais aprofundada, que leve em conta o verdadeiro sentido e alcance dos conceitos de “quota fixa” e de “jogo on-line”, previstos no art. 2º da Lei 14.790/2023. Sem isso, corre-se o risco de se ter uma visão apenas parcial e equivocada do real desejo do legislador. Neste artigo, pretendemos trazer algumas contribuições técnicas e jurídicas sobre esses conceitos e sobre a repercussão que eles trouxeram para o mercado de jogos brasileiro.

Fundamentos apresentados na Nota Técnica da SPA

Em sua manifestação, a SPA reproduz o conceito legal de loteria de aposta de quota fixa (art. 29 da Lei nº 13.756/2018) e busca delimitar os contornos específicos da loteria de aposta de quota fixa. Em seguida, faz uma breve explanação sobre a dinâmica de funcionamento do “jogo do bicho” para afirmar que ele, “enquanto modalidade lotérica, é proibido no País por ser considerado uma contravenção penal”.

Com base nessas premissas, a SPA sustenta que esse jogo é “uma modalidade lotérica ilícita e distinta da modalidade lotérica aposta de quota fixa”, razão pela qual “os agentes operadores de loteria de apostas de quota fixa não podem ofertar jogos on-line que adotem regras próprias do jogo do bicho”.

Em resumo, o raciocínio adotado pela SPA está baseado em duas premissas centrais: (i) o jogo do bicho é vedado pela Lei de Contravenções Penais (LCP), sendo, portanto, totalmente ilícito; e (ii) o jogo do bicho é “modalidade distinta” da loteria de aposta de quota fixa e por isso não está enquadrado no conceito legal de jogo on-line. Ambas as premissas, contudo, parecem carecer de revisão.

A Lei de Contravenções Penais e os limites de sua aplicação

A primeira premissa adotada pela SPA aponta para uma aplicação praticamente ilimitada da Lei de Contravenções Penais. A lógica da SPA é que, como o art. 58 da LCP veda expressamente o jogo do bicho, ele seria ilegal independentemente de sua forma de oferta – ou seja, física ou virtual. Esse raciocínio, contudo, desconsidera um critério importante de intepretação de normas jurídicas: o princípio da especialidade.

É preciso aqui lembrar a clássica divisão dos jogos e apostas de acordo com seu regime jurídico: os proibidos, os permitidos e os tolerados. Proibidos são apenas os jogos baseados em apostas que a lei expressamente afirma que não podem ser praticados: esse é o caso do cassino, do bingo, dos jogos em slot (caça níqueis) e até do jogo do bicho físicos. No Brasil, eles são vedados porque a Lei de Contravenções Penais tem regras específicas que se aplicam a eles: o art. 50 (que veda, entre outros, as apostas em jogos em que o resultado depende predominante ou exclusivamente da sorte ou as apostas em competições esportivas) e o art. 58 (que veda o jogo do bicho físico).

Por sua vez, são permitidos os jogos baseados em apostas que tenham expressa e específica concordância do legislador. Os casos clássicos são as loterias federais e as loterias estaduais previstas em leis específicas. A questão é que, com o advento da Lei 13.756/2018, e da Lei 14.790/2023, esse rol de jogos permitidos foi ampliado, passando a englobar também toda e qualquer modalidade de jogo que possa ser objeto de aposta de quota fixa.

Daqui, portanto, extrai-se uma conclusão parcial importante: se determinado jogo puder ser enquadrado na categoria jurídica de “loteria de aposta de quota fixa” ele passa necessariamente a ser considerado como permitido, e poderá ser explorado se atendidos os requisitos estabelecidos pelo legislador – o que, por conseguinte, afastará a vedação geral e irrestrita da Lei de Contravenções Penais pelo princípio da especialidade. Fica, então, superada a primeira premissa do raciocínio adotado na Nota Técnica da SPA.

A Lei 14.790/2023 e seus conceitos centrais: quota fixa e jogo on-line

Outro ponto que chama a atenção na leitura da Nota Técnica da SPA é que ela trata a loteria de aposta quota fixa como se fosse uma modalidade lotérica distinta do jogo do bicho. Um olhar mais amplo e aprofundado sobre o tema, contudo, nos leva a conclusão diversa.

Para a boa compreensão do assunto, é crucial estabelecer uma distinção entre sistema ou forma de aposta e objeto de aposta. O conceito legal de “aposta de quota fixa”, presente nas duas leis especiais que tratam do tema, está relacionado exclusivamente à forma de aposta e não ao seu objeto. Tanto é assim que a Lei 13.756/2018, conceitua a loteria de aposta de quota fixa como “sistema de apostas relativas a eventos reais ou virtuais em que é definido, no momento de efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico”. Ao contrário do que sugere a SPA em sua Nota Técnica, em nenhuma das duas leis há qualquer restrição à modalidade específica de jogo. Tudo o que se fez foi exigir que essas apostas recaiam sobre “eventos reais de temática esportiva” ou sobre “eventos virtuais de jogos on-line”.

Mas o que seria, então, o jogo on-line? Novamente o legislador não limitou a esta ou àquela modalidade ou àquele objeto. Preferiu ser amplo e genérico: jogo on-line é todo “canal eletrônico que viabiliza a aposta virtual em jogo no qual o resultado é determinado pelo desfecho de evento futuro aleatório, a partir de um gerador randômico de números, de símbolos, de figuras ou de objetos definido no sistema de regras”.

Portanto, é possível extrair outra conclusão parcial importante: não há, nem na Lei 13.756/2018, nem na Lei 14.790/2023, qualquer regra expressa que vede a oferta desta ou daquela modalidade de jogo específica. E isso nos leva à superação da segunda premissa do raciocínio adotado pela Nota Técnica da SPA.

Superadas as duas premissas de raciocínio da Nota Técnica aqui analisada, a definição quanto ao enquadramento ou não do jogo do bicho on-line como figura lícita depende exclusivamente de dois fatores: de sua adequação ao sistema de apostas legalmente definido (quota fixa); e da adequação de seu objeto ao conceito de “evento virtual de jogo on-line”.

O jogo do bicho como sistema de aposta de quota fixa

De acordo com o art. 2º, inciso II, da Lei 14.790/2023, a quota fixa consiste em “fator de multiplicação do valor apostado que define o montante a ser recebido pelo apostador, em caso de premiação, para cada unidade de moeda nacional apostada”. O enquadramento do jogo do bicho nesse sistema nos parece bem claro.

Vale rememorar: nesse jogo, cada bicho representa um grupo de quatro dezenas. O avestruz representa o grupo 01, que contém as dezenas 01, 02, 03 e 04. Os números crescem até chegar na vaca, representante do grupo 25 com dezenas 97, 98, 99 e 00.

Há várias opções de apostas e o prêmio varia conforme a probabilidade de acerto no jogo escolhido. Por exemplo, a “milhar seca” ou “na cabeça”, acontece quando o apostador acerta o milhar no primeiro sorteio e paga 4 mil vezes o investimento. Ou seja, se a ‘fezinha’ for de R$ 1,00 o apostador ganhará R$ 4 mil. Mas há outras possibilidades: caso o apostador invista R$ 1,00 ele saberá qual será o valor do seu prêmio: grupo (R$ 18,00), dezena (R$ 60,00), centena (R$ 600,00), duque de grupo (R$ 18,75), duque de dezena (R$ 300,00), terno de dezena (R$ 3.000,00) e terno de grupo (R$ 130,00).

É da essência, da natureza, e está no “DNA” do jogo do bicho tradicional a prévia estipulação dos fatores de multiplicação sobre o valor apostado. É algo básico até, que qualquer apostador com um mínimo de conhecimento já tem como certo. Sendo assim, não há nenhuma margem para dúvidas quanto ao enquadramento do sistema de apostas jogo do bicho na categoria de “quota fixa”.

O jogo do bicho como espécie de jogo on-line

De acordo com o art. 2º, inciso IX, da Lei 14.790/2023, o evento virtual de jogo on-line consiste em “evento, competição ou ato de jogo on-line cujo resultado é desconhecido no momento da aposta”. Por sua vez, o conceito de jogo on-line é determinado fundamentalmente pela forma como seu resultado é gerado. De acordo com o inciso IX do mesmo art. 2º, é considerado como tal aquele em que o resultado “é determinado pelo desfecho de evento futuro aleatório, a partir de um gerador randômico de números, de símbolos, de figuras ou de objetos definido no sistema de regras”.

Veja, caro leitor, que o legislador aqui foi bem genérico e liberal. Ele mais uma vez não estabeleceu restrição alguma quanto “ao que” é gerado, mas sim quanto a “como” ele é gerado. E mais uma vez o jogo do bicho se enquadra com perfeição nos ditames legais. Isso porque, como qualquer jogador sabe, é da essência desse jogo que haja uma geração randômica de números, a partir da qual se pode aferir os vencedores pelo número que apostaram ou ao grupo que corresponde a figuras de animais a eles associados.

Portanto, desde que o resultado do jogo do bicho on-line seja determinado por um gerador randômico; que seu sistema observe todas as prescrições legais e regulamentares; e que isso seja devidamente aferido pelas entidades certificadoras homologadas pela SPA, a oferta desse jogo deverá ser considerada como plenamente lícita.

Conclusão

Diante do exposto, chegamos à conclusão de que, respeitosamente, a posição sustentada pela SPA na Nota Técnica nº 3826/2024 precisa ser objeto de revisão, com vistas a propiciar o devido cumprimento das disposições da Lei 14.790/2023.

Como explicado aqui, não há nenhuma justificativa técnica ou jurídica para amparar a restrição pura, simples e apriorística da oferta do jogo do bicho on-line. Estamos convencidos de que, além da legitimidade social, o jogo do bicho (desde que em meio virtual) passou a contar com a legitimidade conferida pela ordem jurídica – naturalmente, desde que os requisitos estabelecidos nas leis de regência das apostas on-line sejam cumpridos.

Tudo deve depender, portanto, do exame circunstancial, a ser feito pelas entidades certificadoras homologadas pelo Ministério da Fazenda sobre cada plataforma ou sistema de jogo do bicho on-line, e não de um juízo moral sobre o passado deste jogo – juízo este que, registre-se, há muito não se coaduna mais com o real sentimento da sociedade brasileira.

(*) Fabiano Jantalia é advogado especialista em Direito Econômico e Direito de Jogos. Sócio-fundador de Jantalia Advogados. Doutor e Mestre em Direito (UnB). MBA em Finanças (FGV) e Magnho José é jornalista, editor do BNLData e presidente do Instituto Jogo Legal – IJL.

Fonte: BNL Data