NA MÍDIA | Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às cooperativas de crédito

Imagem NA MÍDIA | Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às cooperativas de crédito

O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 1990) foi um importante marco no que diz respeito à defesa dos consumidores nacionais e da ordem pública. Tal regulamentação se deu em observância aos comandos previstos nos artigos 5º, inciso XXXII, e 170, inciso V, ambos da Constituição Federal de 1998.

Ocorre que, desde sua criação, o CDC desperta uma série de questionamentos no tocante à definição dos setores, contratos ou conjunturas jurídicas que estariam suscetíveis a sua aplicação. E esse fenômeno não foi diferente no âmbito do mercado financeiro.

As instituições financeiras sempre questionaram a incidência da Lei nº 8.078, de 1990, nas relações travadas com seus clientes. Entretanto, essa discussão parece ter “perdido força” após a edição da Súmula nº 297, do STJ (em 2004), que passou a preconizar a aplicação indistinta e obrigatória do CDC a toda e qualquer instituição financeira.

Em nossa percepção, contudo, é indubitável que o CDC não pode ser aplicado ou imposto às cooperativas de crédito, que não podem ser comparadas aos demais agentes econômicos que atuam no mercado de crédito. A relação entre bancos comerciais e usuário final é pautada por uma condição de cliente-fornecedor. Em sentido oposto, os cooperados são efetivos sócios, detentores de direito de participação e de voto.

A prestação de serviços no âmbito cooperativo é fundada na mutualidade, característica predominante para poder oferecer as opções disponíveis no mercado financeiro a um grupo específico e pré-definido de pessoas, na forma do artigo 2º, da Lei Complementar nº 130, de 2009.

É premissa central da relação consumerista a necessidade de reequilibrar a assimetria causada pela hipossuficiência da parte consumidora, seja ela econômica, técnica ou social. Porém, na relação cooperativa não há nada que careça de “reequilíbrio”, por ser constituída entre sócios e a partir de uma escolha de comunhão. O CDC se presta a proteger espaços de fragilidade que não se revelam presente em um ato cooperativo típico.

Em se entendendo pela mutualidade, não subsiste vulnerabilidade ou hipossuficiência na relação entre cooperativa e associado. De igual modo, os atos praticados entre cooperativa e seus associados são atos cooperativos típicos e não atraem a incidência do CDC por não serem operações de mercado, nos termos do artigo 79, parágrafo único, da Lei nº 5.764, de 1971.

O artigo 982, parágrafo único, do Código Civil, nos parece um dispositivo muito importante para concretização desta distinção, pois ele evidencia que as cooperativas de crédito deverão, necessariamente, ser consideradas como sociedades simples para todos os fins, independentemente de seu objeto. Portanto, sua atividade econômica nunca será realizada de maneira empresarial, com a organização dos fatores de produção e circulação de bens ou serviços (artigo 966, do CC), ao contrário das outras instituições financeiras, que deverão sempre serem constituídas sob a forma de sociedade anônima, conforme preceitua o artigo 25, caput, da Lei nº 4.595, de 1964 (“Lei Bancária”).

Evidentemente, as cooperativas não se enquadram ou se equiparam às sociedades empresárias, estrutura à qual se amoldam as demais instituições financeiras. Por uma consequência lógica, as sociedades simples não dispõem da organização e estrutura típicas de um modelo empresarial, sendo inviável a sua submissão ao CDC.

Em outra perspectiva, as sociedades anônimas possuem a oportunidade de serem constituídas com capital aberto e captarem recursos diretamente de investidores no mercado de capitais. Tais elementos são fundamentais para compreensão da dicotomia existente entre essas duas figuras jurídicas, já que essas são benesses que não se encontram à disposição das cooperativas de crédito, por exemplo.

Ao enfrentar situação semelhante, o STJ parece ter bem compreendido as características que diferenciavam as entidades de previdência complementar de natureza fechada (“fundos de pensão”) e as entidades de natureza aberta, o que culminou na edição da Súmula nº 563/STJ, de 2016, que reforçou a inaplicabilidade do CDC às relações construídas entre os fundos de pensão e seus participantes.

O argumento preponderante na definição dessa tese se constituiu na ideia de que o patrimônio e os rendimentos auferidos pela entidade revertem-se integralmente em seu próprio proveito, sem que esteja caracterizado o “intuito lucrativo”, em reafirmação à natureza associativista e mutualista da atividade, conforme registrado no julgamento do RESp nº 1.444.304/SE, em 2/6/2015. Foi com base na constatação da dicotomia no tratamento das entidades de natureza aberta e fechada que o STJ deliberou pela aplicação da Súmula nº 321 somente às entidades de natureza aberta.

Em sentido semelhante, é de se destacar também que, no âmbito da justiça do trabalho, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) parece já ter compreendido tal diferenciação. Em 2017, a Corte editou a Orientação Jurisprudencial (OJ) nº 379, da SDI-1, para preconizar ser impossível o enquadramento dos funcionários de cooperativas de crédito no conceito jurídico de “bancário” (artigo 224, da CLT), e o que chama mais atenção é que isso se deu após a constatação de que existiram “diferenças estruturais e operacionais entre as instituições financeiras e as cooperativas de crédito”.

Analisando detidamente todos esses apontamentos, parece de todo inviável não rediscutir (ou ao menos questionar) as razões pelas quais o Enunciado da Súmula nº 297, do STJ, tem sido aplicado invariavelmente às cooperativas de crédito, sem que se esteja dando a devida atenção ao arcabouço jurídico absolutamente peculiar dessas instituições, que mesmo sendo desprovidas de propósito lucrativo, ainda assim exercem um papel fundamental para o fomento do mercado de crédito nacional.

Paulo Portuguez é advogado especialista em Direito Bancário, Direito Administrativo Sancionador e Direito do Trabalho, pós-graduado e mestrando em Direito pelo (IDP) e sócio do Jantalia Advogados

Fonte: Revista Conjur

WhatsApp