NA MÍDIA | Escândalos de manipulação de resultados se multiplicam em SP; atleta relata esquema em áudio

Imagem NA MÍDIA | Escândalos de manipulação de resultados se multiplicam em SP; atleta relata esquema em áudio

Polícia Civil paulista investiga 11 casos suspeitos de fraude, entre eles jogo do Batatais em que jogadores supostamente forçaram escanteios para beneficiar apostadores; veja os lances

Apenas três minutos tinham se passado desde o início do jogo quando o XV de Jaú atacou pela esquerda. A bola foi cruzada para a linha da pequena área do Batatais.

O zagueiro Everton, que estava mais perto do gol e de frente para o lance, poderia ter se impulsionado para afastar a bola na direção do meio de campo. Mas ele preferiu fazer um incomum movimento e cabecear a bola para trás, para a linha de fundo, cedendo escanteio para o rival.

Foi o primeiro de uma série de 11 lances semelhantes, só no primeiro tempo, em que as decisões de jogadores do Batatais, na maioria das vezes, contrariaram a lógica.

A insistência dos atletas em jogar a bola pela própria linha de fundo quando outras e melhores ações eram possíveis chamou a atenção mesmo num duelo da quarta divisão de São Paulo. Não parecia ser apenas deficiência técnica.

A suspeita de que o jogo, em junho deste ano, poderia ter sido manipulado fez com que o presidente do Batatais, Reginaldo Barbo, demitisse sete jogadores e a comissão técnica, chefiada na época por Decio Antonio Toledo Soares, conhecido como Ednam.

– É melhor tocar com a equipe da base, que veste nossa camisa, do que continuar tomando sapatada e eles ganhando dinheiro com manipulação de resultado – diz Barbo ao ge.

Segundo relato do presidente do Batatais, todos, confrontados, assinaram suas rescisões sem questionamentos, exceção ao meia Ronildo Barbosa Silva, que protestou.

Em conversa com o dirigente, gravada sem que o jogador fosse avisado, Ronildo admitiu ter sido convidado pelos colegas para participar de um esquema de manipulação de resultados para beneficiar apostadores.

A ele, foi prometido um pagamento de R$ 2,5 mil para que ajudasse a cumprir uma meta de escanteios definida previamente – o valor é o dobro do salário que ele recebia no clube. Ele afirma ter rejeitado.

No áudio, que o ge revela abaixo, Ronildo conta que por causa da negativa foi cortado da delegação que viajou a Jaú para a partida, mesmo tendo treinado como titular durante a semana – ele tinha começado entre os 11 a partida anterior, contra o São-Carlense.

Os outros seis atletas, Everton Fernandes, Wagner Leite, David Ciderlan, Lucivaldo da Silva, Vitor Igor Barreto e José Carlos Filho, deixaram o clube e se tornaram alvo de investigações. Eles negam o crime.

Epidemia de casos

O jogo em que o XV de Jaú venceu o Batatais por 4 a 1 gerou um alerta pela aparente falta de discrição dos atletas ao supostamente fraudarem a partida. Mas esse não é o único duelo sob suspeita em São Paulo, onde ao menos 11 inquéritos foram abertos desde novembro do ano passado para investigar possíveis fraudes.

Em comum, são jogos de campeonatos de pouca visibilidade. Na lista, constam partidas do Paulista Sub-20, do estadual feminino e da quarta divisão em São Paulo – como os jogos do Andradina, revelados pelo ge em junho, além de outros confrontos do Batatais.

Torneios em que a repercussão de mídia é menor e em que os atletas recebem pagamentos muito inferiores – muitas vezes, um salário-mínimo – em comparação a jogadores dos grandes clubes do país fazem parte do cardápio de preferências de aliciadores, que encontram terreno mais fértil para manipular resultados que beneficiem apostadores.

– Os casos aumentaram, mas não só no estado de São Paulo. Isso é devido à criação de muitos sites e aplicativos de aposta. Outra questão são os baixos salários, isso para não dizer de atletas que às vezes nem recebem – diz o delegado Cesar Saad, titular da Drade (Delegacia de Repressão aos Delitos de Intolerância Esportiva), de São Paulo.

Há alguns anos, a Federação Paulista de Futebol passou a contratar empresas especializadas em monitoramento de casas de apostas para identificar partidas possivelmente manipuladas.

Essas empresas cruzam dados das bolsas com os dos campeonatos para checar alterações incomuns nos padrões de apostas – quando, por exemplo, há um volume grande de apostas numa equipe apontada como zebra ou num resultado muito específico.

É a partir desses relatórios que começa boa parte das investigações em São Paulo.

– A gente estava absolutamente no escuro até 2015, 2016. A Federação Paulista foi a primeira que implementou um programa de integridade, contratou empresa especializada para monitorar partidas. É muito difícil que algo chame a atenção do mercado de apostas e a gente não tenha conhecimento total – explica o presidente do Comitê de Integridade da FPF, Paulo Schimitt.

O caso do Batatais foi diferente. A denúncia partiu do próprio presidente do clube, que relatou as suspeitas à Federação Paulista.

Caminho semelhante fez o Santos, também neste ano, ao tornar pública a suspeita de que um funcionário do clube tentou aliciar uma atleta do Red Bull Bragantino antes de um jogo pelo Paulista feminino.

Para Schimitt, resultado de um trabalho preventivo feito em todas as competições:

– (Os dirigentes) quando ouvem essas palestras, compartilham informações, lembram de algum caso suspeito. A ideia é estimular denúncias. Às vezes o monitoramento não consegue varrer tudo – afirma ele, citando que a Federação Paulista organiza de quatro a cinco mil partidas por ano em seus torneios profissionais, masculinos e femininos, e de base.

– Eu recebi comentários de pessoas que também achavam que estavam passando por isso. Recebi ligações de pessoas (que diziam): “Presidente, também estamos investigando aqui” – conta Reginaldo Barbo, que apresentou denúncias de seu clube, o Batatais, à federação.

Mesmo assim, há o temor de que as fraudes se tornem mais comuns e deixem de ser um problema só de campeonatos de pouca expressão.

O aumento nos valores pagos em apostas e a ampliação do leque do que pode ser apostado – não só em resultados, mas também número de escanteios, como na suspeita do Batatais, ou cartões, por exemplo – podem servir de incentivo para a prática do crime.

– Isso dificulta nosso trabalho de identificação do crime. Valores muito maiores podem atrair atletas não só de clubes pequenos, mas também dos das Séries A e B. Não temos casos nesse sentido ainda, mas, na minha opinião, isso não demora a acontecer – diz o delegado Saad.

Em janeiro, a federação inglesa iniciou uma investigação contra um atleta do Arsenal por suspostamente ter forçado um cartão amarelo para beneficiar apostadores. Meses depois, o jornal Daily Mail revelou que o alvo é o volante suíço Granit Xhaka – que nesta semana foi convocado para disputar a Copa do Mundo e será adversário do Brasil no Catar.

Investigações

No dia 18 de outubro, o delegado Cesar Saad apresentou à Justiça o relatório final da investigação sobre a conduta dos jogadores do Batatais.

O documento aponta que não foi possível “vislumbrar indícios de autoria e materialidade delitiva” – as provas colhidas não foram suficientes para definir se houve crime ou quem o cometeu. Ainda não há uma decisão se o inquérito será arquivado.

Trata-se de uma conclusão frequente em investigações do tipo.

Apesar da identificação dos atletas supostamente envolvidos por um dos colegas, em áudio gravado pelo presidente do clube, todos os jogadores citados negaram o crime em depoimento à polícia.

Ronildo, o jogador que rejeitou a proposta, foi contatado pelos investigadores, mas depois não foi mais encontrado e seu depoimento não foi colhido, impedindo que ele corroborasse à polícia o que disse ao dirigente do Batatais. O ge também procurou o jogador, sem sucesso.

– O crime de manipulação é um em que a materialidade da prova é difícil de colher. É difícil de dizer se um jogador chutou aquela bola para fora de propósito, se foi erro técnico, algo físico. Isso dificulta nosso trabalho – conta Saad.

Ele explica, também, que geralmente são casos que não cumprem as exigências previstas para a quebra de sigilo, seja telefônico ou bancário, dos investigados.

– Tudo isso está dentro de uma legislação em que os crimes precisam cumprir requisitos. Muitas vezes, o crime de manipulação não cumpre as exigências da lei para que a gente consiga essas quebras.

Quatro jogadores do Batatais foram ouvidos no inquérito: Everton Fernandes, o Carioca, Vitor Igor, Wagner Leite, David Ciderlan, chamado de Bolacha, e Lucivaldo da Silva. Todos negaram participação em esquemas de manipulação.

O ge tentou contato com eles, mas não houve retorno. Assim como com o ex-técnico do Batatais, Decio Antonio Toledo Soares, que não atendeu às ligações ou respondeu a e-mail da reportagem.

A Procuradoria do TJD (Tribunal de Justiça Desportiva) de São Paulo denunciou Carioca, Bolacha, Wagner e um outro atleta, José Carlos Filho. Em setembro, eles foram condenados a 300 dias de suspensão no artigo 243 do CBJD (Código Brasileiro de Justiça Desportiva), o de “atuar, deliberadamente, de modo prejudicial à equipe que defende”.

Segundo o Procurador Geral do tribunal, Wilson Marqueti Júnior, os atletas foram notificados do processo, mas não apresentaram defesa.

Não é a primeira vez que jogadores são punidos na esfera esportiva, mas se livram de processos criminais.

Em setembro de 2020, o ge revelou um esquema de compra de resultados na Série A3 do Paulista que envolveu clubes como o Barretos, o Olímpia e o Paulista, além de atletas. Um aliciador, gravado em áudio por um jogador que negou participação, tentou fraudar jogos desses clubes.

Em 2022, por falta de provas, o inquérito foi arquivado.

Houve punições nos tribunais esportivos, porém. Cinco jogadores do Barretos foram suspensos, e o clube foi multado.

O atleta Samuel Sampaio, que atuava no Paulista, chegou a ser condenado em primeira instância a 360 dias de suspensão, mas conseguiu reverter a decisão em segunda instância, na qual foi absolvido.

Ele passou quase seis meses sem poder atuar. Hoje, processa a Federação Paulista de Futebol e cobra pouco mais de R$ 1,5 milhão em indenização por dano moral.

Condenações

Condenações pelo crime de manipular resultados esportivos ainda são raras no país. Na semana passada, porém, um caso emblemático finalmente teve uma sentença, dura, publicada.

Em 2016, a Polícia Civil de São Paulo foi para as ruas para a Operação Game Over, cujo objetivo era desmantelar uma quadrilha que aliciava atletas a fraudarem placares de jogos no país.

As investigações levaram à denúncia de 11 pessoas, além da identificação de dois estrangeiros, que foram processados pelo crime de manipulação e por associação criminosa, o que permitiu à polícia utilizar ferramentas mais eficientes, como escutas telefônicas, que foram essenciais para a reunião de provas no caso.

Os envolvidos atuaram em partidas em São Paulo e de campeonatos do Nordeste. Eles chegaram a cogitar a possibilidade de arrendar a gestão de um clube para facilitar o esquema.

Os 11 réus foram condenados a dez anos e oito meses de prisão, mas todos poderão recorrer em liberdade. Os estrangeiros, malaios citados como financiadores da quadrilha, nunca foram encontrados pelas autoridades brasileiras.

Ainda em São Paulo, outro caso terminou em acordo do Ministério Público com o aliciador – que precisou pagar apenas 25% do que ofereceu de suborno a um atleta para encerrar o processo.

Em agosto de 2019, um goleiro do time sub-20 do Flamengo de Guarulhos relatou ao clube e à Federação Paulista de Futebol ter recebido uma oferta de R$ 5 mil para fraudar o resultado de um jogo contra o Jabaquara pelo estadual da categoria.

Ele apresentou reproduções de mensagens que recebeu de um advogado em uma de suas redes sociais e relatou uma conversa por telefone com o acusado em que o homem lhe pedia que tomasse dois gols no primeiro tempo. Ele também tentaria aliciar o goleiro do time adversário, que deveria sofrer mais dois gols no segundo tempo para que a partida terminasse empatada por 2 a 2.

À polícia, o advogado admitiu ser o dono do perfil que contatou o jogador e da linha de telefone citada na investigação, mas disse que tinha a intenção de empresariar o atleta, apesar de não ter conhecimento da função.

Em junho deste ano, em audiência, o Ministério Público sugeriu um acordo para encerrar o processo. Nele, o advogado admitiu integralmente a prática do crime e concordou com o pagamento de um salário-mínimo, R$ 1.212, ao Fundo de Combate ao Covid-19 de Guarulhos para se ver livre das acusações.

O pagamento foi efetuado no dia 7 de outubro, e a promotoria já pediu a extinção da punibilidade do advogado.

À espera de regulamentação

As apostas esportivas fazem parte de um mercado trilionário. Entidades que atuam na prevenção a fraudes estimam que o faturamento anual das casas se aproxime de 1,5 trilhão de euros, o equivalente a R$ 8 trilhões.

O Brasil manteve-se à margem deste negócio por anos até que, em 2018, foi sancionada a lei que legalizou as apostas esportivas no Brasil.

Até então, o jogo era ilegal e tratado como contravenção numa legislação da década de 1950. Mesmo o crime de manipulação só foi tipificado numa alteração do Estatuto do Torcedor em 2010 – em 2005, o árbitro Edilson Pereira de Carvalho, que protagonizou o episódio da Máfia do Apito, foi processado por estelionato, o que dificultou uma condenação.

A nova legislação, porém, ainda não foi regulamentada – e o prazo termina no fim deste ano.

– Só o fato de a lei ter sido publicada fez com que investidores estrangeiros se aproximassem do Brasil, só que elas ainda não podem explorar essa atividade sediadas no Brasil, já que essa matéria ainda depende de regulamentação – explica o advogado Fabiano Jantalia, especializado no mercado.

Nesse cenário, as casas de apostas, a maioria virtuais, exploram o mercado brasileiro a partir de suas operações no exterior. Isso cria uma dificuldade também ao apostador. Se não há restrições práticas para que ele faça apostas nesses sites, há limitações para o caso de ele ser lesado.

– Perde o país, que não pode recolher tributos. E perde o consumidor, que não tem ninguém a quem recorrer. Para você ajuizar uma ação, você vai precisar indicar um endereço, um responsável legal, uma sede, um CNPJ, e ainda que você localize alguém, você também vai precisar de ter patrimônio para ser executado – afirmou Jantalia.

Segundo o advogado, as grandes casas possuem ferramentas para monitorar e prevenir casos de manipulação – é comum que apostas sejam interrompidas quando se nota uma movimentação fora do padrão, o que também aciona o alerta das empresas que monitoram as casas, como as que prestam serviço à Federação Paulista de Futebol.

– A casa de apostas vai lucrar com qualquer resultado, mas a manipulação cria um risco reputacional. As casas que pretendem se impor no mercado têm total interesse no combate à manipulação.

Jantalia conta que essa preocupação tem sido notada nos contratos que empresas têm fechado com clubes brasileiros – as marcas de casas de apostas se tornaram onipresentes nos uniformes das principais equipes do país.

– Temos notícias de que algumas casas têm colocado cláusulas nos patrocínios que permitem a rescisão do acordo se for constatado que atletas tiveram envolvimento com manipulação.

É um alerta que relaciona o risco a clubes e atletas de nível mundial, extrapolando o perfil comum de equipes menores e jogadores que ganham pouco.

Em agosto, o ge contou que a Sportradar, que faz monitoramentos e atua em parceria com a Fifa, previa que 2022 se tornaria o ano com o maior número de fraudes identificadas, superando os mil casos – até aquele mês, eram 670 eventos suspeitos, 400 deles no futebol.

A empresa faz parte de uma força-tarefa criada pela Fifa, que inclui outras entidades como a Interpol e o FBI, para monitorar a Copa do Mundo do Catar, que começa no próximo dia 20. Segundo a federação, pela primeira vez será possível monitorar mercados de apostas e ações de jogo em tempo real em todas as partidas do torneio.

Fonte: portal Globo Esporte (GE)

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