“Estados estão fazendo leitura distorcida da decisão do STF sobre as loterias”, diz advogado
Em entrevista exclusiva à Yogonet Brasil, o advogado Fabiano Jantalia, sócio-fundador do escritório Jantalia Advogados e especialista em Direito de Jogos, analisou algumas das questões que têm sido amplamente discutidas pelo setor no Brasil.
Em sua visão, os estados estão com uma “leitura distorcida” da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as loterias, situação que Jantalia considera como uma das mais desafiadoras no novo cenário de regulamentação no Brasil. Ele defendeu ainda a criação de uma agência reguladora ou autoridade nacional para o setor de jogos e apostas.
Confira abaixo:
Em um dos seus artigos para o BNLData, você disse “o que funciona bem na regulação em Las Vegas, Macau ou Reino Unido pode não funcionar no Brasil”. Agora, eu gostaria de fazer a pergunta inversa: o que o país pode aprender e replicar de positivo com experiências de regulamentação vindas do exterior?
A primeira e mais importante lição que se pode extrair da experiência internacional é que é imprescindível a criação de um aparato institucional específico, preparado, especializado e dotado de autonomia e independência para cuidar dos jogos e apostas no Brasil.
Embora a criação de uma secretaria já tenha sido anunciada e inclusive formalizada por meio de um decreto, a figura da secretaria, no médio e longo prazo, tende a não ser a mais adequada e recomendada à luz da experiência internacional.
O setor de apostas esportivas, à similitude do que ocorre com outros setores, como o financeiro e o de seguros, é dotado de alta complexidade técnica, de grande repercussão econômica e, portanto, suscita muitos interesses políticos.
É preciso que esse aparato tenha um mínimo de tranquilidade e de isolamento do ponto de vista institucional, para protegê-lo do fenômeno da captura política e da captura econômica.
Sem isso, nós teremos muita dificuldade de construir um marco regulatório que seja consistente e tecnicamente adequado, sobretudo à vista das peculiaridades e das vicissitudes que nós temos aqui no Brasil, por exemplo, no que diz respeito à matéria de defesa do consumidor.
Nesse ponto, me parece que o modelo mais adequado para cuidar da regulação de apostas, jogos e loterias no Brasil é o modelo de agência reguladora ou de uma autoridade nacional, como nos termos da Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações] ou da ANEEL [Agência Nacional de Energia Elétrica].
É fundamental que a gente tenha um corpo diretivo constituído por uma diretoria colegiada e que esses membros tenham mandato fixo e não coincidente com os do presidente da República. Isso transformaria esse órgão, em lugar de ser um órgão de governo, em um órgão de Estado e o aproximaria das boas práticas mundiais.
A revista Veja publicou uma matéria segundo a qual o Governo Federal está preocupado em evitar uma “guerra fiscal” com estados que impuseram regras e taxas próprias para o setor de apostas (o Paraná, por exemplo). A matéria cita que a situação pode trazer insegurança jurídica ao mercado, já que haveria pontos que entram em conflito ou se “canibalizam”. Como você vê a situação? Acredita que o fato de os estados terem suas próprias regras e taxas pode realmente conflitar com a União e trazer complicações para o setor?
A preocupação do Governo Federal é totalmente justificável. Na minha visão, muitos estados estão se utilizando de uma leitura absolutamente distorcida dos termos da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre as loterias.
O STF, na minha opinião, não permitiu competência legislativa ampla para os estados. Pelo contrário, o que o Supremo fez foi apenas permitir que explorem as suas próprias loterias, mas dentro de regras estabelecidas pela União.
Portanto, a única competência legislativa que o estado tem diz respeito à organização de suas próprias loterias ou a delegação delas. Ou seja, se um estado, por exemplo, em lugar de explorar o serviço por meio de sua loteria própria, resolver conceder, ele poderá fazê-lo.
Mas o agente que for licenciado, autorizado ou que tiver a concessão por parte do estado, precisará observar as regras já estabelecidas pela União, no caso, a lei federal e a regulamentação do Ministério da Fazenda.
Então, o que está havendo é uma leitura exagerada, distorcida e que definitivamente não condiz com aquilo que o Supremo Tribunal Federal efetivamente quis decidir ao julgar os casos que trataram desse assunto.
Na minha visão, essa questão das loterias estaduais é um dos aspectos mais desafiadores e, ao mesmo tempo, mais ameaçadores para a segurança jurídica no novo ambiente que se pretende inaugurar com a lei 14.790/2023 [de apostas e cassinos online].
Isso porque a permanecer a postura desses estados que, baseados em interpretações equivocadas, têm estabelecido verdadeiras leis paralelas em relação ao tema das loterias de apostas de quota fixa, nós passaremos a ter, sim, um cenário de grande insegurança e de grande canibalização.
É preciso um freio de arrumação na legislação em relação a esse assunto, deixando muito clara a limitação que o Supremo Tribunal Federal deu à atuação dos estados. Eles não têm competência plena para legislar sobre isso. A competência dos estados se limita à organização e à forma de exploração de suas próprias loterias.
Há um projeto (PL 2.234/2023, antigo PL 442/1991) em discussão no Senado que legaliza a atividade de cassinos presenciais, bingos e jogo do bicho. Você acha que, após a regulamentação das apostas pela lei 14.790, o Congresso conseguirá avançar nesse debate e autorizar esses jogos? Acredita que a legalização seria benéfica ao Brasil, seguindo o exemplo de países vizinhos?
A aprovação da lei 14.790 foi um ponto importante na trajetória dos jogos porque vai representar uma espécie de teste de laboratório para o Brasil.
À medida que tenhamos uma experiência bem-sucedida e aprendamos com essa trajetória de regulação e supervisão dos jogos online, a tendência é que utilizemos esse aprendizado para os cassinos, bingos e jogo do bicho de base física.
Então, eu acho que o Congresso Nacional foi muito sábio ao aprovar a lei e permitir que tivéssemos esse teste que trará muitos benefícios em termos de aprendizado institucional e regulatório para o direito brasileiro e nos dará, com isso, melhores condições de nos prepararmos para uma eventual aprovação mais ampla.
Acredito que a legalização dos jogos de base física seria muito importante para o país. O próprio projeto de lei 442/1991 estabelece alguns aspectos bem interessantes. Por exemplo, a necessidade de que a intervenção do poder público na atividade econômica de jogos e apostas seja direcionada ao interesse nacional.
O projeto ainda fala que essa exploração de jogos deve ser orientada pelo poder público de maneira a servir de instrumento de fomento ao turismo, à geração de emprego, de renda e ao desenvolvimento regional. Então, basta uma mera leitura dos objetivos estabelecidos na própria lei, lá no seu artigo quatro, para vislumbrar que o legislador está consciente, direcionado e buscou construir um texto voltado a efeitos positivos para o Brasil.