ARTIGO | Conjur | Apostas de quota fixa e criptos

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Apostas de quota fixa e criptos: restrições impostas pela Portaria SPA/MF nº 615/2024

Recentemente, foi publicada a Portaria Normativa nº 615/2024, da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda. Aguardada há muito tempo no setor, a portaria estabeleceu diretrizes e regras para operações de pagamento envolvendo o setor de iGaming no Brasil.

Dentre diversas alternativas concebidas, estipulou-se regras no tocante aos métodos de transferência de recursos aceitos pelo regulador para fins de depósito e saque de valores, bem como para viabilização do pagamento de prêmios provenientes das apostas. Em síntese, tais operações ficaram restritas a quatro veículos possíveis: Pix, TED, cartão de débito ou pré-pago e transferência nos próprios livros (book transfer), medida pouco utilizada na prática.

Ocorre que, para além da admissão desses instrumentos como única via à disposição dos apostadores e operadores, a SPA/MF também proibiu nominalmente o uso de outros veículos para realização de aportes financeiros, tais como o dinheiro em espécie, boletos e até mesmo cheques.

É evidente e compreensível a preocupação apresentada pela SPA/MF, tendo em vista que, infelizmente, esses mecanismos terminam sendo utilizados para a prática de atividades ilícitas. Isso porque tendem a dificultar a precisa identificação da origem dos recursos, como ocorre no caso dos boletos, que podem ser pagos por qualquer terceiro.

Entretanto, a experiência demonstra que, quase sempre, a opção por técnicas de proibição irrestrita não se revela assertiva e interessante para o mercado regulado.

Exemplificando, para o aprimoramento das políticas de compliance, não seria interessante talvez passar a admitir pagamentos via boleto, contudo, condicionados à apresentação de comprovante de pagamento realizado diretamente da conta cadastrada de titularidade do apostador?

Ou melhor, não seria igualmente interessante — ao invés de proibir de modo geral — buscar restringir aportes em dinheiro em espécie a limites máximos e diários, o que geraria até um desincentivo à utilização desses meios para fins ilícitos?

Sem dúvidas, essas poderiam ser soluções menos “agressivas”. Porém, ao que importa ao presente artigo, é fundamental observarmos a situação que ocorre com os criptoativos. Isso porque a SPA/MF também proibiu a utilização dos aportes financeiros por meio de “ativos virtuais e outros tipos de criptoativos”, em completa contramão às expectativas trazidas no marco normativo desse segmento, pavimentado na Lei nº 14.478, 2022.

Proibição dos criptoativos

Mas, afinal, quais seriam os motivos concretos para a proibição do uso de criptoativos em apostas?

Como dito, analisando os outros meios de aporte obstados, é possível compreender que tal imposição decorreria da incapacidade de se estabelecer um fluxo ou “lastro” da origem e destino dos recursos a serem aportados. Entretanto, essa característica não se mostra presente quando se está a tratar de criptoativos.

Os criptoativos possuem por característica natural o uso de tecnologia de controle descentralizada (“”blockchain”), que é crucial no registro de informações sem a necessidade de administrador central. Desse modo, se o problema é ausência ou inexistência de registros de dados, isso não ocorrerá com o uso de criptoativos.

No âmbito de exchanges centralizadas (“CEX”), por exemplo, é comum a prática de se formatar estruturas de PLD-FT (prevenção à lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo), medida inclusive sugerida pelas entidades autorreguladores do segmento, que recomendam a adoção de medidas de KYC, KYE e KYP etc. para agentes operadores desse setor, as denominadas Vasps.

Além disso, a própria Lei nº 14.478, de 2022, estabelece como diretriz fundamental a ser observada pelas Vasps a “prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa, em alinhamento com os padrões internacionais”, conforme artigo 4º, inciso VII.

Ou seja, se eventualmente a proibição conferida aos criptoativos para o segmento de apostas passar pelo receio de uso desse ativo para atividades atinentes à lavagem de dinheiro, a grande verdade é que estaremos diante da imposição de premissa deveras “preconceituosa” e que vai de encontro aos elementos e princípios estabelecidos pela Lei nº 14.478, de 2022.

Essa mesma norma estabelece, inclusive, que os criptoativos podem ser usados e transferidos eletronicamente “para realização de pagamentos”, nos termos de seu artigo 3º. Se tal pagamento viabiliza uma operação juridicamente lícita, não parece subsistirem motivos concretos para limitação de uso.

Quando se concretiza uma aposta, as partes (operador e apostador) estabelecem um contrato sinalagmático, com obrigações recíprocas, uma primeira de dar (pagar), e outra de mesma natureza de restituir, vinculada a um evento futuro e incerto (condição), conforme o artigo 121 do Código Civil.

Segundo estabelece o artigo 421, do CC, os contratantes possuem ampla liberalidade contratual para pactuarem suas obrigações e compromissos, de modo que, se uma das partes aceita receber por meio de ativo virtual para, posteriormente, pagar o prêmio ou disponibilizar saque em moeda corrente (com o auxílio de uma Exchange, obviamente), isso não tornaria inviável o negócio jurídico firmado.

Prejudicial ao apostador de boa-fé

Em outras palavras, o que se quer colocar e dizer é que, se determinado operador de apostas esportivas estabelecer algum tipo de vínculo comercial com uma Vasp (ou mesmo atuar como tal, algo deveras improvável), não parece haver, ao menos em teoria, nenhuma regra proibitiva para o recebimento desses ativos para concretização de apostas esportivas.

Ao estabelecer a vedação, a SPA/MF parece ter partido de uma visão parcial, ignorando os benefícios que o uso desse ativo pode trazer para o apostar de boa-fé e para o próprio crescimento da indústria, desde que observadas as regras mínimas de compliance, governança e PLD-FT. A própria Lei nº 14.478, 2022, estabelece instruções gerais sobre os vetores de orientação que devem conduzir essa indústria, alguns de suma importância, como a proteção à poupança popular, a defesa do consumidor, bem como a solidez e eficiência das operações (vide artigo 4º).

Como já dito antes, a utilização da técnica do “tudo ou nada” nem sempre pode parecer a melhor opção e concorrer para consolidação do comportamento que se visa a formatar nos usuários, ao final.

Considerando as restrições apresentas, não seria talvez mais prudente pensar na idealização de soluções mais intermediárias, como, por exemplo, a aceitação de aportes de valor por meio de criptoativos, desde que: provenientes de conta de mesma titularidade mantida em Exchange devidamente autorizada pelo Banco Central; e haja a conversão instantânea do criptoativo para moeda fiduciária, com imediato espelhamento na contra transacional, a fim de permitir saques pelo apostador.

Em síntese, o que se quer evidenciar é que, adotando-se mínimas medidas de controle e adequação, parece ser jurídica e operacionalmente possível utilizar criptoativos para execução de apostas de quota fixa, especialmente por esse instrumento de pagamento normalmente se encontrar armazenado em carteiras virtuais, a facilitar o processo de identificação do percurso dos valores vertidos.

Fonte: Conjur

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