Relatos são de compulsão até por adolescentes, que apostam à noite e usam cartão de crédito dos pais; investigações miram influenciadores que divulgam o game. Procurada, empresa responsável não respondeu
O caso da enfermeira Gabriely Sabino, de 23 anos, moradora do interior de São Paulo que fugiu de casa, chamou a atenção para o ‘jogo do tigrinho’. Segundo a família, amigos disseram que a jovem, que já foi reencontrada, estava viciada nesse jogo de apostas online e acumula dívidas.
Considerado uma espécie de cassino virtual, o ‘tigrinho’ se propaga no País com a ajuda de influenciadores digitais. Como é considerado jogo de azar, quem faz a propaganda do ‘tigrinho’ pode incorrer em contravenção penal, além de crimes contra o consumidor e estelionato.
Também se multiplicam as tentativas de golpes para se aproveitar dos apostadores e as operações policiais que miram os criminosos. O Estadão procurou a empresa responsável pelo game online, mas não obteve resposta.
Uma família de Sorocaba (SP) joga o ‘tigrinho’ desde o início do ano e relata uma rotina de perdas e ganhos. Os quatro familiares – a mãe, dois filhos e duas noras dela – seguem influenciadores que postam os jogos com aposta mínima de R$ 10. Neste domingo, 24, o filho e a nora da dona de casa tiveram os jogos bloqueados depois de depositar R$ 300 para resgatar um suposto ganho de R$ 4.060.
“Ele ganhou R$ 2.460 e ela R$ 1.600, mas não conseguiram sacar. Ele tinha depositado R$ 100 e ela, R$ 200, mas foram bloqueados. Era golpe”, disse a mulher que pediu anonimato “por vergonha”.
O filho dela, que fez o depósito de R$ 100, disse que, quando atingiu o valor mais alto, foi informado por um suposto auditor que sua conta tinha sido bloqueada por segurança e colocada sob “contole de risco”. O pedido inicial foi de um depósito de R$ 200 para liberar o saque.
Caso não fizesse, o dinheiro continuaria preso para sempre. Ele foi convencido a pôr mais dinheiro, até ser informado do bloqueio permanente da conta, a menos que depositasse R$ 700. “Esse valor será adicionado à sua conta e não à conta de outra pessoa. Fique tranquilo, nossa plataforma vem de um país respeitável”, escreveu o golpista.
A vítima revelou que todos na família jogam, menos seu pai. “Eu jogo, meu irmão joga, minha mulher, minha mãe, minha cunhada. Mas jogamos no risco de ganhar ou de perder. Muitos amigos também jogam. A gente joga consciente”, disse.
Especialistas, porém, alertam sobre os riscos à saúde desse comportamento compulsivo, que deve crescer com a popularização dos games online. No Brasil, a estimativa é que de 1% a 1,3% da população tenha problemas patológicos relacionados ao hábito.
O vício em apostas é um transtorno reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Veja sinais de alerta:
A dona de casa disse que, mesmo depois do golpe, a família não vai parar de jogar. “Vira e mexe tem um ganho bom e qualquer dinheiro que sobra a gente vai pondo lá. Ninguém é viciado ao ponto de jogar R$ 5 mil, R$ 10 mil. Joga um pouquinho, mas não deixa de ser um vício, não é?”
O Fortune Tiger, mais conhecido no Brasil como ‘jogo do tigrinho’, foi desenvolvido pela PG Soft, empresa com sede em Malta. O game pode ser acessado até mesmo pelos celulares mais básicos e passou a ser promovido por influenciadores digitais em suas páginas nas redes sociais. Para aliciar os seguidores, os influencers passaram a postar fotos e vídeos simulando ganhos rápidos e fáceis.
No dia 16, uma influencer de 20 anos, com mais de 300 mil seguidores, foi alvo de operação da Polícia Civil em São José dos Campos (SP). A investigação aponta que ela teve ascensão patrimonial ‘meteórica’ adquirindo, em pouco tempo, carros de luxo, moto aquática e uma casa em condomínio de alto padrão.
Conforme a SSP, são investigados supostos crimes contra o consumidor, contra a relação de consumo, contra a economia popular, lavagem de dinheiro e contravenção penal por divulgar em redes sociais jogos de azar.
Em maio, a Justiça do Paraná expediu mandados de prisão e de buscas contra três influenciadores que atuavam em uma plataforma que direcionava seus seguidores para o ‘jogo do tigrinho’. Só um deles tinha mais de 500 mil seguidores e movimentou, em alguns meses, R$ 8,5 milhões.
Em suas páginas, o grupo postava carros de luxo e fotos de viagens para destinos icônicos, como Paris e Dubai. Eles já tinham sido alvos de operação em 2023, mas descumpriram ordens judiciais de não voltar a fazer propaganda do jogo.
O advogado Jackson Bahls, que defende os três influenciadores do Paraná, afirmou que a Justiça revogou as prisões de dois deles que estão no no Brasil. O terceiro, que está em Dubai, é cidadão dos Emirados Árabes e ficará lá até o fim do processo, segundo o advogado. “Vamos demonstrar que a operação foi um grande engano contra eles”, disse.
Em Maceió, a Polícia Civil deflagrou este mês a Operação Game Over contra 12 alvos, entre eles influenciadores, agenciadores e intermediários da fraude, apontados como responsáveis por cooptar apostadores em redes sociais.
Os carros de luxo apreendidos, entre eles um Corvette e três Porsches, somam mais de R$ 5 milhões. Foi pedido bloqueio de R$ 38 milhões do patrimônio dos investigados. Apenas uma influencer, com mais de 1 milhão de seguidores, é suspeita de cobrar R$ 80 mil para inserir postagens do ‘tigrinho’ em seu perfil.
No pedido à Justiça para realizar a operação, a polícia de Alagoas detalhou que os influenciadores de cassinos digitais criaram contas para demonstrar ao público como jogar e ganhar, mas os ganhos são fictícios.
O trabalho de persuasão, segundo a investigação, inclui postagens de uma suposta vida de luxo propiciada pelo jogo, como mansões, carros potentes e viagens a destinos turísticos requintados. O pagamento aos influenciadores é baseado em comissão conforme o número de seguidores que começam a jogar o ‘jogo do tigrinho’.
Adolescente usava cartão de crédito do pai para jogar, diz mãe
A funcionária de uma concessionária em Tatuí, no interior de São Paulo, só descobriu que a filha de 14 anos estava viciada no ‘jogo do tigrinho’ quando a adolescente começou a tirar notas ruins no colégio.
“Fui chamada pela direção da escola, que a gente paga com sacrifício, porque o desempenho dela despencou. Eles me perguntaram se tinha algum problema em casa. Só então descobri que ela jogava à noite, no quarto. Pior que ela usava o cartão de crédito do pai, que não mora com a gente”, conta.
Segundo ela, em pouco mais de um mês, a adolescente gastou R$ 720 em apostas. Ainda conforme a mãe, a filha começou a jogar por ter sido incentivada por uma colega de classe, que disse ter acumulado dinheiro suficiente para fazer uma viagem para a Disney, nos Estados Unidos.
“Vimos que ela seguia também alguns influenciadores digitais que incentivam a adesão a esse jogo”. Até esta segunda-feira, 24, a mulher, que falou sob a condição de não ser identificada, não tinha decidido se levaria o caso à polícia.
Segundo o jurista Fabiano Jantalia, especialista em Direito de Jogos da Jantalia Advogados, o game é oficialmente comercializado pela empresa PG Soft com licença da autoridade reguladora de Malta. O jogo também é licenciado em Gibraltar e no Reino Unido.
“O que temos visto aqui no Brasil são pessoas que fazem uma emulação, replicando o funcionamento do jogo, criando jogos fake parecidos com o jogo do Tigre e distribuem esses links em canais de WhatsApp e Telegram, entre outros”, afirma.
Segundo ele, muitas pessoas estão fraudando e copiando esse jogo para que os apostadores acreditem que seja o jogo Fortune Tiger. Por não ser o jogo oficial, eles manipulam o algoritmo para fazer com que as pessoas acabem só perdendo dinheiro.
“Estamos diante de um estelionato em que a vítima é o apostador, que acredita que é levado a uma plataforma oficial”, acrescenta.
Ainda segundo o advogado, com base em informações divulgadas até agora, a polícia tem mirado os influenciadores que se valem de sua condição para propagar e divulgar esses links de sites fraudulentos.
Com relação às plataformas, no entendimento dele, há uma jurisprudência consolidada no Brasil de que elas não podem ser responsabilizadas por conteúdo ilícito a não ser que haja denúncia e não tomem providências.
O jurista recomenda que a pessoa que imagina estar diante de um produto oficial e perde dinheiro para um jogo adulterado faça a denúncia. ”A pessoa que fez a aposta e foi lesada deve denunciar à autoridade policial até para evitar que outras pessoas caiam no mesmo golpe. A pessoa também deve registrar no perfil do influenciador que é golpe, assim ele não poderá alegar ignorância e passa a ser corresponsável pelo crime”, disse.
Em nota, a Secretaria da Segurança de São Paulo informou que a 3ª Delegacia de Investigações Gerais (Deic) atua para coibir esse tipo de crime. “Os casos são investigados à medida que são identificados os chamados influenciadores digitais que atuam na divulgação desses jogos ilegais”, diz.
“Diversas operações foram realizadas em 2023 e 2024, algumas delas ainda em andamento”, continua. Os detalhes são preservados para garantir autonomia às ações de Polícia Judiciária”, segundo a pasta.
A Polícia Civil do Paraná informou que a ação que resultou na prisão de suspeitos de lesar vítimas através de jogos em redes sociais é decorrente de investigação que apura crimes de estelionato, organização criminosa, lavagem de dinheiro e crime contra a economia popular. Outras denúncias envolvendo jogos de azar são investigadas.
Já a Polícia Civil de Alagoas informou que a Operação Game Over foi desencadeada por meio da Delegacia de Estelionato e com apoio de outros órgãos, cumprindo a decisão da 17ª. Vara Criminal para busca e apreensão de diversos bens de influenciadores e de pessoas que os assessoravam. As investigações prosseguem.
O Estadão não conseguiu contato com a defesa da influencer alvo de operação em São José dos Campos.
Como denunciar?
A empresa Meta, dona do Facebook, WhatsApp e Instagram, informou que trabalha para limitar a disseminação de spam em suas redes, uma vez que não permite conteúdos que possam enganar os usuários. “Entendemos que esse tipo de conteúdo cria uma experiência negativa e prejudica a capacidade das pessoas de interagir de forma autêntica em suas comunidades e procuramos impedir que as pessoas se utilizem de forma abusiva de nossas plataformas, produtos ou recursos para aumentar artificialmente a visualização ou distribuir conteúdo em massa para ganho comercial”, disse.
A empresa recomenda que as pessoas denunciem perfis que acreditem que possam violar suas políticas. Para denunciar uma conta ou publicação que acredite estar violando os padrões da comunidade da meta, basta tocar em “…” na parte superior direita da publicação, em seguida tocar em “denunciar” e seguir as instruções na tela.
O usuário também pode analisar e remover possíveis seguidores bot e spam de suas respectivas listas de seguidores. Caso sejam oficialmente spam, as contas não poderão seguir o usuário sem sua confirmação. Para conferir o passo a passo de como analisar possíveis contas de spam e como removê-las, basta clicar “aqui” (para Instagram e Facebook).
O WhatsApp informou que trabalha para reduzir o envio de qualquer tipo de conteúdo indesejado (spam) em seu sistema. “Criar um espaço seguro para que os usuários se comuniquem é uma prioridade e queremos reduzir o número de mensagens indesejadas que possam ser enviadas pelo WhatsApp. No entanto, assim como acontece com mensagens SMS e ligações telefônicas, outros usuários do WhatsApp ou empresas que têm seu número de telefone podem entrar em contato com você.”
Para o controle de quem pode interagir, é possível restringir quem pode adicionar o usuário a grupos, além de bloquear e até denunciar contas ou mensagens. Quando a denúncia é feita, o WhatsApp recebe informações sobre suas interações recentes com o usuário denunciado e conduz uma análise da denúncia com base nos termos de serviço do app. O sigilo da denúncia é mantido.
O Instagram informou que também trabalha para manter a comunidade livre de comportamentos inautênticos. Serviços de engajamento falso, que aumentam artificialmente a popularidade de uma conta por meio da compra e venda de curtidas, comentários e seguidores violam os Termos de Uso, assim como tentativas de comprar, vender ou transferir qualquer elemento de sua conta. Entre as punições previstas, estão a suspensão e a remoção das contas.
Nova política do TikTok cita jogos de azar
Procurado, o TikTok encaminhou sua política de publicidade, em vigor desde 17 de maio. “Para determinados produtos e serviços (como jogos de azar e bebidas alcoólicas), abrimos exceções limitadas para anúncios pagos de anunciantes com a permissão explícita do TikTok caso estejam em conformidade com todas as restrições, leis e regulamentos relevantes de segmentação por idade”, diz.
Sobre os jogos de azar, a plataforma informa que muitas pessoas em todo o mundo encontram entretenimento por meio deles. “Reconhecemos que arriscar dinheiro em um jogo ou aposta pode causar danos potenciais a algumas pessoas, incluindo grandes perdas financeiras ou problemas de saúde mental. Não permitimos a facilitação ou a promoção de jogos de azar ou atividades semelhantes”, disse.
O TikTok reconhece ainda que jogos de azar podem colocar os jovens em um risco maior de danos e podem não ser adequados para todos os públicos. “O conteúdo será restrito (18 anos ou mais) e não elegível para o feed ‘Para Você’ se mostrar ou glamourizar jogos de azar ou atividades semelhantes a jogos de azar”, diz no texto.
A reportagem entrou em contato com o Telegram, mas não obteve retorno.
O Estadão procurou a PG Soft e ainda não teve retorno. Em seu site, a empresa se identifica como uma das maiores do mundo em entretenimento digital. Para os jogos de azar, diz exigir que os usuários tenham ao menos 18 anos e monitorar ativamente as contas de menores para verificar a informação.
“Qualquer conta que for encontrada e tenha sido aberta por um menor de idade será fechada imediatamente e todos os ganhos serão confiscados”, afirma.
Fonte: Estadão