Regulação dos sistemas de apostas e jogo online: panorama dos requisitos técnicos com a Portaria 722
Com o setor de iGaming se debruçando sobre a Portaria 222, que define os requisitos técnicos para sistemas e plataformas, o GMB se adianta e traz um artigo exclusivo de Filipe Senna, sócio do Jantalia Advogados, desvendando o documento. Nele, o autor explica em detalhes temas como localização dos servidores de apostas, conceitos de jogo online, terminais físicos e mais.
Em 6 de maio de 2024, a Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda publicou a Portaria nº 722, que estabelece os requisitos técnicos e de segurança dos sistemas de apostas, nas plataformas de apostas esportivas e de jogos online e em centros de dados a serem utilizados por empresas interessadas na obtenção de licença para fornecimento desse serviço no Brasil.
Indiscutivelmente, trata-se da portaria mais extensa e detalhada já publicada pelo Ministério da Fazenda sobre o setor de apostas de quota fixa até hoje, contando com mais de 35 páginas e cinco anexos com conteúdo técnico aprofundado.
Ao leitor, se avisa: neste artigo, o que se pretende é tratar dos pontos mais interessantes do normativo em uma visão panorâmica. Diante da riqueza de detalhes apresentada nos anexos da Portaria nº 722/2024, sugiro a todos os interessados no tema que leiam também o próprio texto apresentado pelo Ministério da Fazenda em sua integralidade.
A Portaria nº 722/2024 apresenta, em resumo:
(i) os conceitos iniciais da Portaria, necessários à compreensão da estruturação do sistema, da plataforma e da central de dados de apostas;
(ii) os requisitos técnicos relativos à operação de apostas de quota fixa no Brasil;
(iii) as exigências de certificação e de estruturação de relatório de avaliação para certificação;
(iv) a forma de supervisão e fiscalização dos operadores; }
(v) os terminais de apostas; e
(vi) o conceito de jogos de fortuna online.
I – Localização dos sistemas de apostas e centrais de dados do operador
O primeiro ponto interessante da Portaria nº 722/2024 está na redação do artigo 4º, referente aos requisitos técnicos, no qual se determina que os sistemas de apostas e central de dados de operadores licenciados no país deverão estar sediados em território brasileiro e em conformidade às disposições da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709, de 2018 – LGPD).
Essa disposição territorial da central de dados tem, como um dos objetivos principais, viabilizar a fiscalização e a regulação constantes e ininterruptas dos operadores. Consequentemente, os operadores devem se atentar ao fato de que, dessa maneira, os dados de operação passarão a ser tangíveis também ao Poder Judiciário brasileiro.
Por outro lado, o parágrafo 1º do próprio artigo 4º já estabelece uma exceção à norma de disposição territorial do sistema de apostas e da central de dados.
O operador poderá também sediar suas centrais de dados e sistema de apostas em território estrangeiro, desde que o país sede possua um Acordo de Cooperação Jurídica Internacional com o Brasil, tanto em matéria cível (consumerista), quanto em matéria criminal. Também, será necessário que o operador cumpra os requisitos da transferência internacional de dados dispostos na LGPD.
No caso de se sediar as centrais de dados no exterior, o operador deverá:
(i) ter autorização específica e prévia do titular dos dados para a transferência internacional, com a explicação clara quanto à finalidade da operação;
(ii) fornecer acesso seguro e irrestrito, de forma remota e presencial, ao Ministério da Fazenda aos sistemas e centrais de dados;
(iii) replicar no Brasil as bases de dados e informações, que serão atualizadas de forma contínua, com testes periódicos; e
(iv) apresentar um plano de continuidade de negócios de Tecnologia da Informação, no caso da ocorrência de situações críticas que possam colocar em risco a operação.
A Portaria nº 722/2024 exige que o Poder Público brasileiro tenha, dentro dos princípios inerentes ao Estado, potencialmente pleno acesso a todos os dados de operação de apostas de quota fixa, diante de uma localização tangível dos bancos de dados de operadores.
Tal questão é reforçada nos artigos 9 e 10 da Portaria, nos quais há a exigência de que, para a realização da supervisão e fiscalização pelo Ministério da Fazenda, os operadores de apostas de quota fixa devem, a qualquer tempo, conceder pleno acesso aos sistemas de apostas para as unidades e agentes de fiscalização.
O sistema de apostas, incluindo suas plataformas de apostas esportivas e de jogos de fortuna online, serão submetidos também a procedimentos de inspeção, conforme solicitado pelo Ministério da Fazenda.
Por fim, os agentes operadores de apostas de quota fixa deverão encaminhar ao Ministério da Fazenda os dados referentes às apostas, aos apostadores, às carteiras dos apostadores, às destinações legais e demais informações de sua operação, conforme a periodicidade e formato estabelecidos pelo Ministério da Fazenda em Manual disponibilizado no website oficial.
Consequentemente, diante do regramento dessa Portaria, fica expressamente proibido sediar centrais de dados e sistemas de apostas nos famosos paraísos fiscais, como Curaçao, Gibraltar e outros territórios listados na Instrução Normativa nº 1.037, de 2010, da Receita Federal.
II – Todos os operadores autorizados passarão a ter o domínio “bet.br”
O artigo 5º da Portaria nº 722/2024 prevê que os canais eletrônicos utilizados pelo agente operador para ofertar apostas de quota fixa deverão utilizar o registro de domínio “bet.br”, conforme regulamento específico a ser editado pelo Ministério da Fazenda. Com isso, todo operador autorizado a ofertar apostas de quota fixa no Brasil deverá atualizar seu domínio para “bet.br”.
III – Os terminais de apostas esportivas
O terceiro ponto interessante da Portaria nº 722/2024 é a regulamentação mais específica de terminais de apostas esportivas, um dispositivo disponibilizado pelo agente operador no qual o apostador pode realizar apostas na modalidade física.
Particularmente, me questiono se os terminais de apostas são natimortos – pelo fato de que o apostador pode realizar as apostas pelo seu celular, de qualquer local; ou são tematicamente interessantes – dispostos em eventos e situações estratégicas; e democráticos aos mais diversos apostadores, como meu avô de 93 anos que não consegue apostar pelo celular, mas certamente consumiria um terminal de apostas.
De qualquer forma, os operadores de apostas de quota fixa poderão ofertar apostas que tenham por objeto eventos reais de temática esportiva, na modalidade física, por meio de terminais de aposta. Esses terminais deverão sempre estar conectados e integrados ao sistema de apostas do operador, observados os requisitos técnicos estabelecidos nos Anexos I e II da referida Portaria.
É importante destacar que as apostas de quota fixa, que tenham por objeto os eventos de jogo online, somente poderão ser ofertadas em meio virtual, não sendo possível operar jogos de fortuna online em terminais de apostas. Esse tão importante tema ainda está pendente de avaliação Pelo Senado Federal, no substitutivo ao Projeto de Lei nº 442, de 1991 – o marco Regulatório dos Jogos de Fortuna no Brasil – que clama por aprovação.
IV – O conceito de jogo [de fortuna] online
Antes de tudo, eu sempre insisto na correta denominação dessa atividade: “jogo de azar” é um termo pejorativo e ultrapassado, decorrente da Lei de Contravenções Penais, que já deveria ter sido sepultado. O correto é “jogo de fortuna” ou “jogo de sorte”, afinal, os jogadores buscam a sorte e fortuna, ninguém busca azar.
Continuando, o último capítulo da Portaria nº 722/2024 estipula objetivamente os requisitos de identificação de modalidades como jogos de fortuna online dentro do contexto de apostas de quota fixa. Acredito que esse tópico tenha sido, possivelmente, um dos mais polêmicos e criticados nessa Portaria.
Primeiro, os jogos de fortuna online devem conter, obrigatoriamente, uma quota fixa: um fator de multiplicação do valor apostado que defina o montante a ser recebido pelo apostador, em caso de premiação, no momento de efetivação da aposta, para cada unidade de moeda nacional apostada.
Assim, a quota fixa é requisito fundamental de toda e qualquer modalidade a ser ofertada no ambiente regulamentado contemporâneo. Em qualquer opção de aposta ou de jogo online, no momento de efetivação do ingresso no evento de jogo, deve ser apresentado ao usuário o fator de multiplicação do valor apostado em caso de acerto do prognóstico e consequente premiação (Lei nº 13.756 – artigo 29, § 1º; Lei nº 14.790, artigo 2º, inciso II).
Na prática, em um jogo de slots apto a ser operado no Brasil, o operador deve demonstrar, na interface e nas regras do jogo, o fator de multiplicação correspondente a cada uma das combinações vencedoras possíveis, a quota fixa para cada sequência apta a ser premiada. Quando ingressar no jogo, o usuário deve ser informado e a ele disponibilizada uma tabela com quanto será pago por cada uma das combinações, a saber também o ganho máximo e o ganho mínimo, de acordo com cada sequência.
Em seguida, a Portaria nº 722/2024 reforça a necessidade de que o resultado do jogo de cassino online seja determinado pelo desfecho de um evento futuro aleatório, a partir de um gerador randômico de números (RNG), de símbolos, de figuras ou de objetos definido no sistema de regras.
Esse segundo requisito representa um dos elementos mais significativos e importantes para a indústria de jogos online, que é a aleatoriedade ou imprevisibilidade do resultado da rodada ou do evento de jogo, garantida por um gerador randômico de números, de símbolos, de figuras ou de objetos, conforme o artigo 2º, inciso VIII, da Lei nº 14.790/2023.
Essa aleatoriedade é um dos princípios elementais do contrato de jogo desde sua origem, quando se operava a atividade em meio presencial, ou até alheia a componentes tecnológicos, e ganhou mais notoriedade com a aplicação da regulação técnica no setor de jogos.
A conduta regulatória e o objetivo que permeia esse requisito estão alocados na necessidade de que o resultado dos jogos seja efetivamente imprevisível e completamente independente de interferências ou influências externas em sua dinâmica e no próprio resultado.
Esse requisito é inerente até ao entretenimento do jogo, pois a previsibilidade ou definição prévia do resultado retiram a emoção do jogo de fortuna, quando se espera a “intervenção da sorte”.
Embora haja uma série de críticas em relação a esse conceito, eu já escrevi aos amigos do Games Magazine Brasil (GMB) um artigo de opinião desmistificando a classificação dos jogos de fortuna online, que pode ser acessado aqui. Algo que é reputado como complexo pode, sim, ser simplificado de maneira técnica.
No entanto, em relação ao conceito de jogo online e os limites de operação dessa modalidade por empresas autorizadas no Brasil, resta saber se será adotada uma interpretação extensiva – como proposta no outro artigo – ou se será meramente restritiva, limitando nossa rica diversidade de jogos de fortuna online.
Filipe Senna
Sócio do Jantalia Advogados, mestre em Regulação de Jogos e Apostas com enfoque em jogos de fortuna online.
Fonte: GMB