Acabou o prazo que o governo tinha para cumprir com sua obrigação de regulamentar as apostas esportivas. O Games Magazine Brasil consultou os advogados mais conhecidos do setor para saber as consequências legais que pode gerar esta decisão. Integridade do esporte em risco, apostador desprotegido, perda de arrecadação e emprego, inúmeras ações e controvérsias judiciais e um setor no limbo são apenas alguns dos prognósticos dos especialistas.
Quando a lei 13.756/18 foi aprovada, ficou definido um prazo de dois anos para que fosse regulamentada. E como é de praxe no Brasil, ninguém cumpre prazos e por esta razão foi dado um período adicional de mais dois anos para a regulamentação. O prazo adicional também não foi cumprido e o setor de apostas esportivas foi mais uma vez deixado de lado.
Ao não regulamentar a atividade, o governo abre uma brecha sem tamanho para que a operação siga como sempre esteve, em uma zona que nem podemos chamar de cinzenta porque há uma lei para o setor, mas em uma cor indefinida pela falta de regras para a geração de empregos formais no Brasil e a arrecadação de tributos por parte do governo federal.
Integridade esportiva
O advogado Roberto Brasil Fernandes, um dos maiores especialistas em loterias no Brasil, diz que é lamentável que o Governo Federal não tenha regulamentado “essa matéria tão importante para o cenário nacional”. Para ele, “os benefícios da regulação não se limitam a questões como geração de emprego e renda (tributária e não tributária), mas também pelo risco que o esporte corre pela proliferação de grande oferta de apostas sem a regulamentação. Se há um bem a ser protegido é a integridade do esporte”.
Brasil Fernandes diz que a falta de regulamentação, “em tese, pode gerar ações na Justiça, como uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão”. Mesmo assim, ele julga ser temerário tal ato – “que pode ajudar ou não” – tanto pelo fato de o mercado lotérico necessitar de uma boa regulamentação, quanto para que a atividade prossiga de forma harmônica e sustentável.
Em meio à Copa do Mundo do Qatar, vemos comerciais na TV durante as transmissões, marcas globais mostrando toda sua competência comercial para impulsionar seus negócios, embaixadores distribuindo sorrisos e um governo engessado e paralisado diante de um mercado de bilhões de reais que não gera impostos.
Judicialização
Para Rafael Marcondes, head of legal do Rei do Pitaco, “a omissão do presidente da República em não regulamentar as apostas esportivas é preocupante por alguns motivos. Ele pode enfrentar a abertura de mais um processo, por crime de responsabilidade funcional. Quanto aos apostadores, continuarão sem a proteção local caso tenham problemas no relacionamento com uma casa de apostas”.
Segundo o advogado, “a não regulamentação também é complicada para os operadores sérios, que aguardam a abertura do mercado regulado vendo marcas pouco idôneas atuando no Brasil e pondo em risco a reputação de toda uma indústria”.
“Por fim, a omissão presidencial prejudica o próprio governo, que perde arrecadação e a oportunidade geração de negócios. Acredito que diante de todo esse contexto, a tendência deve ser a judicialização por parte dos operadores. A expectativa é que sejam propostas ações requerendo que o Poder Judiciário supra a lacuna deixada pelo Executivo ou fixe prazo para que a regulamentação seja editada, sob o risco de implicações mais graves”, diz Rafael Marcondes.
Segundo Neil Montgomery, fundador e managing partner do escritório Montgomery & Associados, não tendo sido publicado o decreto presidencial de regulamentação das apostas esportivas, nada muda, especialmente em relação às empresas estrangeiras que atuam no mercado: “a lei não perde sua validade. Contudo, para empresas que gostariam de se instalar no Brasil e constituir uma subsidiária, talvez a questão tenha de ser judicializada”.
“O que se comenta, no caso de investidores que querem constituir uma empresa no Brasil, para ter um domínio.br e colocar pontos de venda físicos, é que a atividade foi classificada como uma modalidade lotérica e serviço público, seria necessária a regulamentação para se definir como seriam dadas as licenças para que as empresas passassem a operar adequadamente”, explica o especialista.
“Do ponto de vista criminal, não há ilicitude, mas administrativamente é importante a regulamentação para que as empresas possam operar formalmente. Por isso as empresas terão de entrar com um pedido no Ministério da Economia e, se não for concedido, entrar com uma medida judicial. O decreto daria segurança jurídica”, agrega Montgomery.
Para o especialista, “o triste é que há muitas empresas do exterior que querem vir para o Brasil, pagar seus impostos e o governo impossibilita isso ao não emitir o decreto presidencial com regras claras sobre licenciamento, publicidade e obrigações em termos de jogo responsável. Isso daria um arcabouço legal para o investidor brasileiro e o internacional”.
De qualquer maneira, na avaliação de Montgomery, “a vida continua, mas infelizmente o jogador brasileiro, embora já goze da proteção do Código de Defesa do Consumidor, não vai poder se beneficiar de uma legislação específica voltada para as apostas esportivas, que daria uma proteção adicional. Neste sentido o mercado e o consumidor perdem, assim como o governo, por não consegue arrecadar os tributos incidentes sobre a atividade”.
“Teria sido muito melhor se o decreto e uma medida provisória tivessem sido publicadas dentro do prazo legal, mostrando a seriedade do governo brasileiro e compromisso com um setor em franca expansão. O mundo inteiro espera por isso há quatro anos”, lamentou o especialista.
Melhores práticas existem e já foram mostradas
As áreas envolvidas com a regulamentação – Ministério da Economia à frente – enviou ao Palácio do Planalto uma minuta de decreto que estabelecia todas as diretrizes para os operadores se habilitarem. Mas o documento foi engavetado pelo governo para não ferir acordos do presidente em fim de mandato que via a regulamentação de uma modalidade de apostas como um empecilho na sua busca pela reeleição. Jair Bolsonaro perdeu a eleição, quer goste ou não, e tinha a obrigação de determinar aos seus comandados que cumprissem a lei, ou seja, que regulamentassem as apostas esportivas.
Mas não fez nada disso. Apenas treinou a equipe para dizer que estavam tratando da questão, buscando as melhores práticas internacionais e que a regulamentação sairia quando estivesse bem desenhada.
Para um país com mais de 200 milhões de habitantes que amam apostas e para uma grande parcela dessa população em condições de insegurança alimentar como poucas vezes se viu no Brasil, a inércia do atual governo não pode – e não deve – ser atribuída à falta de tempo e à necessidade de estudar melhor o setor para alcançar as melhores práticas internacionais.
As melhores práticas internacionais podem ser vistas nos principais países desenvolvidos, onde o setor é explorado como uma atividade econômica. Da mesma maneira, podem ser vistas na América Latina, onde o segmento vem se fortalecendo a cada dia. A Colômbia já virou referência no continente, o Peru já avançou no tema, o Chile está fazendo sua lição de casa e a Argentina é outro exemplo na regulamentação das apostas esportivas.
Então, não há que se falar de falta de tempo ou de necessidade de se estudar mais a atividade. Ela é regulamentada – e bem regulamentada – nesses mercados e em outros. Enquanto não regulamenta, o governo não arrecada. E tendo uma lei que ampare as apostas esportivas, o governo não poderá simplesmente proibir que as apostas esportivas continuem prosperando.
Caso tente, vai levar a atividade às Cortes para que se mantenham operando. E lamentavelmente, o Brasil seguirá sem arrecadar. Está mais do que na hora de, mesmo tendo vencido o prazo estabelecido em lei, que o governo apresente a regulamentação, nem que seja para ajustes ao longo da implantação da atividade regulamentada. O mercado sabe muito bem fazer isso e as empresas globais com certeza darão o melhor de si para contribuir com um setor que gera empregos, impostos e entretenimento.
Brechas na legislação brasileira
Sobre a continuidade do atual modelo, sem regulamentação, Udo Seckelmann, advogado especialista em Sports, Gaming & Crypto del escritório Bichara e Motta, afirma que, findo o prazo de quatro anos que o Ministério da Economia tinha para regular o setor, “a atividade permanecerá sendo explorada através da brecha que possuímos na legislação brasileira que permite que operadores baseados em outras jurisdições ofereçam apostas aos residentes no Brasil (o chamado ‘mercado cinza’)”.
“Assim, na prática, nada vai mudar. Estamos diante de uma atividade que foi legalizada, mas não ainda regulamentada. Portanto, operadores estrangeiros continuarão explorando um mercado desregulamentado e sem regras claras”, explica Seckelmann.
Paulo Horn, presidente da Comissão Especial de Jogos Esportivos, Lotéricos e Entretenimento OAB-RJ e membro Comissão de Jogos OAB-DF é outro que lamenta a omissão do chefe do Executivo que se despede deixando de regulamentar as apostas esportivas aprovadas por lei: “Lamentável ainda, na mesma linha, a omissão de parte do Legislativo, uma vez que o Marco legal dos jogos no Brasil e outros projetos de lei regulamentando os jogos de fortuna estão há décadas aguardando o fim da hipocrisia e o desenvolvimento dos jogos de fortuna no Brasil para disputar a preferência dos apostadores que deixam de incrementar a nossa indústria do turismo e entretenimento”.
“Assim como a proibição punitiva dos jogos de azar não foi capaz de acabar com os jogos ilegais, a falta de regulamentação também não impedirá o sucesso das apostas esportivas, mas o setor deve continuar mobilizado, uma vez que a falta de regulamentação abre um espaço indesejado e riscos para o jogo sustentável”, explica o advogado.
Na avaliação do advogado Ricardo de Paula Feijó, sócio do escritório Feijó Bertolini, a insegurança jurídica diante da não regulamentação das apostas esportivas só tende a aumentar: “Do ponto de vista legal, a falta de regulamentação implica a manutenção das apostas esportivas no limbo”.
“As empresas terão todos os incentivos para continuar operando fora do país, sem a possibilidade de a União fiscalizar e, principalmente, arrecadar com a atividade. Junto com isso, aumenta-se a chance de novas investidas do Ministério da Justiça contra os patrocínios das casas de apostas a times de futebol e veículos de comunicação”, comentou Ricardo de Paula Feijó para o GMB.
Controvérsia judicial
Aliás, a questão jurídica tem suscitado inúmeras discussões sobre as apostas esportivas serem ou não serviço público. Fabiano Jantalia, sócio da Jantalia Advogados, comenta que a falta de regulamentação da Lei 13.756 coloca os operadores em um limbo jurídico. “A lei atribuiu a essa atividade a qualificação de serviço público com titularidade da União, ao mesmo tempo em que não exigiu a edição de um decreto regulamentador, apenas um “Ato”, ou seja, uma portaria bastaria para estabelecer as regras de acesso a esse mercado”, explicou.
Segundo ele, o setor poderia estar em um beco sem saída. “Com a definição das apostas esportivas como um serviço público, a princípio a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não abre a possibilidade de se alegar que sem a regulamentação estaria sendo restringida a livre iniciativa. O setor até pode depender de autorização e fiscalização de um órgão federal, mas tal atividade privada não deveria ter sido transformada em serviço público. Isso sim poderia ser um vício já que a lei define como um serviço público, mas passível de exploração em ambiente concorrencial”, destacou Jantalia para o GMB.
Assim, ele entende que “estamos diante de uma atividade econômica privada e neste caso, caberia o questionamento quanto à omissão do Poder Público na regulamentação de uma lei. Com isso, inúmeras ações poderiam chegar às portas da Justiça, como a apresentação de Mandado de Segurança, ADI e até mesmo Mandado de Injunção. Ou seja, haverá controvérsia judicial até que um ato regulamentador seja finalmente editado”.
De volta ao Parlamento?
Na avaliação de Eduardo Diamante Teixeira, advogado especializado em direito desportivo e sócio do Carlezzo Advogados, tudo pode voltar à estaca zero. “Enquanto corria o prazo legal de quatro anos, a regulamentação cabia ao Poder Executivo Federal, através do Ministério da Economia, mas agora, expirado o referido prazo, o assunto poderá retornar ao parlamento brasileiro, para que – por meio de nova lei ordinária – possam ser estabelecidas novas diretrizes para a plena regulamentação da matéria, podendo ser definido não apenas um novo prazo e um eventual novo ente da administração pública responsável por regulamentar o tema, mas sendo também possível a edição de uma lei inteiramente nova e distinta da atual lei nº 13.756/18”, avalia.
Fonte: GMB