Nesta semana, o Portal BNLData publica uma pequena série de artigos sobre o processo de construção da regulação das apostas online no Brasil, iniciado com a aprovação da Lei nº 14.790, de 30 de dezembro de 2023. No primeiro artigo, foram trazidas algumas reflexões sobre a ordenação e sequenciamento de esforços do poder público para dar o adequado início a esse processo.
A conclusão foi a de que o mercado brasileiro de apostas online efetivamente precisa, em primeiro lugar, conceber um sistema regulatório consistente e adequado, que reflita as respectivas especificidades. Neste segundo artigo, então, o que se pretende é apresentar o conceito de sistema regulatório, definir seus pilares e indicar quais devem ser os próximos passos a serem dados.
Em apertada síntese, um sistema regulatório pode ser definido como o conjunto de diretrizes, regras, procedimentos, práticas e instituições que determinam a intervenção do Estado em determinado mercado ou atividade econômica. Da teoria da regulação, pode-se extrair a ideia de que um sistema regulatório está estruturado em cinco pilares.
O primeiro pilar é sua base constitucional ou legal – ou seja, o arcabouço primário que conforma a fonte jurígena do sistema regulatório, por meio da qual o Poder Legislativo define que mercado será regulado, quem será competente para fazê-lo e que diretrizes gerais deverão ser observadas.
O segundo pilar é a política regulatória, por meio da qual o Poder Executivo deixa claro quais serão os objetivos, gerais e específicos, a serem alcançados com a regulação que se busca implementar. Essa política será a bússola de todo o sistema regulatório, na medida em que ela delineia o que de fato o poder público deseja para o mercado de apostas. Ela é que será o ponto de ancoragem de todo o sistema e que, nessa medida, determinará sua forma e seu tempo de ação.
Por sua vez, o terceiro pilar é a estratégia regulatória. Por meio dela, o poder público estabelece os instrumentos, os recursos necessários e os prazos de implementação dos objetivos previamente estabelecidos na política regulatória. Ou seja, enquanto a política define o que deve ser buscado, a estratégia define a forma de execução ou cumprimento do que restou previamente definido. Para isso, há instrumentos conhecidos e já inclusive adotados em lei, como o plano estratégico, o plano de gestão anual e a agenda regulatória [1].
Já o quarto pilar é o dos processos e procedimentos regulatórios, que compreende as rotinas e instrumentos formais de produção e revisão de suas normas e demais atos administrativos (ex: autorizações para operar). Vale destacar que, no caso do mercado de apostas online, a construção de pilar não se limita aos termos da Lei nº 14.790, de 2023. Eles são apenas parte do pilar. É preciso, também, considerar os preceitos da Lei nº 13.874, de 2019 (a “Lei de Liberdade Econômica”), bem como incorporar outros instrumentos importantes para a regulação, como a Análise de Impacto Regulatório (AIR) e a Avaliação de Resultado Regulatório (ARR), é bom que se frise, não deve considerar.
Por fim, o quinto pilar diz respeito aos mecanismos de participação social, prestação de contas e transparência. Esses mecanismos conferem não apenas maior legitimidade e controle da dinâmica de funcionamento do sistema regulatório, como permitem uma maior troca de conhecimento entre regulado e regulador
Esse quinto e último pilar é importante para a retroalimentação do sistema regulatório porque, como já exposto no primeiro artigo desta série, a primeira das falhas apontadas pela literatura especializada em regulação de jogos e apostas na implementação da regulação em países onde essa atividade passou a ser permitida é a falha de conhecimento. Como já se viu, essa falha ocorre quando o Estado não possui suficiente conhecimento sobre a dinâmica de funcionamento do mercado regulado, não sabe identificar os objetivos que precisa alcançar com a regulação deste ou daquele tema específico para que o mercado funcione bem ou melhor ou, ainda, não sabe identificar os meios e a forma de enfrentar determinado problema
Cabe aqui dizer que a regulação não é algo estanque, nem privativo do Estado. Ela deve ser vista como um processo em contínuo desenvolvimento. E, ao contrário do que se firmou no senso comum, nada impede que os próprios agentes do mercado participem desse processo – seja trazendo contribuições para o poder público, seja criando as chamadas normas de autoimposição, por meio do que se convencionou chamar de autorregulação [2].
Não é por acaso que diversas leis de agências reguladoras brasileiras estabelecem a necessidade de que as minutas e as propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários dos serviços prestados sejam objeto de consulta pública, previamente à tomada de decisão pelo órgão. O que busca o legislador com isso é oportunizar a troca de conhecimento e o confronto de pontos de vista. Isso evita, por exemplo, que um regulador neófito – como será a Secretaria de Jogos e Apostas, do Ministério da Fazenda brasileiro – incorra em erros cometidos (e talvez já corrigidos) em outros países.
Ademais, a literatura especializada está repleta de casos bem-sucedidos de autorregulação – e mais até, de casos em que o Estado abre espaço formal para que certos temas sejam disciplinados, no todo ou em parte, pelos próprios agentes do mercado. Na indústria de jogos online, isso inclusive já é uma realidade: a autorregulação recebeu especial atenção do Parlamento Europeu, que consignou em resolução o relevante papel dos códigos de conduta e da cooperação [3]. Isso tem feito com que temas relevantes da indústria de jogos e apostas sejam objeto de discussão e produção de códigos de conduta, recomendações e outros documentos por parte de foros e instituições de autorregulação. Alguns exemplos são a European Gaming & Betting Association (EGBA) [4] e o Gaming Regulators European Forum (GREF) [5].
Sob essa ótica, então, a permeabilidade é um predicado importante de qualquer sistema regulatório, porque ela permite a troca de experiências e conhecimentos entre regulador e regulado. E essa interação contribui, de forma consistente, para mitigar a falha de conhecimento de que tanto se tem falado até aqui.
Entendido o que efetivamente conforma um sistema regulatório, quais os seus pilares e, ainda, qual é a importância de que esse sistema seja dotado de alguma permeabilidade, a questão que se põe em seguida é o que deve ser feito, na sequência, para sua concepção.
O primeiro passo – que na verdade corresponde ao primeiro pilar – já foi dado com a aprovação da Lei nº 14.790, de 2023. Por meio dessa lei foram apresentadas as diretrizes e regras do mercado de apostas online e definidas as condições de entrada, permanência e saída dos agentes operadores.
Sendo assim, o próximo passo é a concepção da política regulatória – a qual, como já explicado, servirá de bússola para o funcionamento do sistema. Mas isso já é assunto para o terceiro artigo dessa série.
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[1] Tais figura estão previstas, por exemplo, nos arts. 17 a 21 da Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019, que dispõe sobre a gestão, a organização, o processo decisório e o controle social das agências reguladoras.
[2] A única diferença é que essas normas terão caráter convencional e, via de regra, não poderão afastar as normas fundamentais estabelecidas pelo Estado.
[3] UNIÃO EUROPEIA. Parlamento Europeu. Resolução do Parlamento Europeu, de 10 de setembro de 2013, sobre os jogos em linha no mercado interno. Bruxelas: Jornal Oficial da União Europeia, 9 mar. 2016, C 93/42. Disponível em: https://bit.ly/3rrcnf9 . Acesso em: 31 jan. 2024.
[4] A EGBA é uma associação que reúne os principais operadores de jogos e apostas estabelecidos, licenciados e regulados na União Europeia e Reino Unido. Seu objetivo central é a promoção sustentável do setor de jogos e apostas, em que consumidores possam usufruir de uma experiência de entretenimento seguro em ambiente de mercado competitivo e bem regulado. A EGBA tem trabalhado em 3 frentes de autorregulação: parâmetros de responsabilidade, com ênfase nas normas do Comitê Europeu de Normalização (CEN), propaganda responsável e proteção de dados.
[5] O GREF foi criado em 1989 como resultado de uma conferência entre as autoridades reguladoras de jogos e apostas da Dinamarca, França, Grã-Bretanha, Holanda, Portugal e Espanha. Ao longo de sua existência, o fórum tem sido palco de relevantes discussões, como prevenção à lavagem de dinheiro, operações de sites ilegais, proteção aos consumidores, distinções entre jogos e apostas, lisura nos meios de pagamento, jogo responsável.
Fonte: BNLData