A aprovação da Lei nº 14.790, de 30 de dezembro de 2023, foi um importante ponto de inflexão na história dos jogos e das apostas no Brasil. Embora não tenha sido a primeira norma legal a tratar do assunto – uma vez que a Lei nº 13.756, de 2018, já havia lançado as sementes dessa atividade econômica, ao enquadrar a aposta de quota fixa como modalidade lotérica –, foi a nova lei quem estabeleceu, pela primeira vez, diretrizes e regras para estruturação, organização, funcionamento, regulação e supervisão desse novo mercado em nosso país.
Engana-se, porém, quem acha que, desde então, o Brasil passou a ter um marco regulatório pronto e acabado para o setor. Basta uma leitura minimamente atenta da lei, e um breve conhecimento de teoria de regulação, para se chegar à conclusão de que a aprovação dessa lei é apenas o ponto de partida de um longo processo de construção da identidade, normatização e institucionalização desse setor no Brasil.
A questão é que as apostas de quota fixa são algo novo para o Estado brasileiro, no qual não temos suficiente experiência institucional e normativa. Mas, por onde começar? Como conduzir esse processo para que ele transcorra de forma adequada e consistente?
Para tentar ajudar a esclarecer esses pontos, publicarei, aqui no portal BNLData, uma pequena série de artigos sobre relevantes questões que precisam ser consideradas no processo de concepção e implementação da regulação das apostas esportivas no Brasil. Neste primeiro artigo, o objetivo é trazer algumas reflexões sobre a ordenação e sequenciamento de esforços do poder público para dar o correto início a esse processo.
O primeiro ponto que precisa ficar claro é: regular não é apenas produzir normas. Na verdade, a norma é apenas um dos instrumentos a serviço de uma causa muito maior: influenciar ou estabelecer o comportamento dos agentes de determinado mercado para que ele funcione de forma eficiente e segura de determinado mercado.
Antes de se produzir normas, é preciso saber onde, como e quando se quer chegar com a regulação. Parece algo básico, mas o erro mais comum – especialmente no mercado de jogos e apostas, mundo afora – é produzir atos jurídicos que não estão devidamente ancorados a objetivos de política pública que tenham sido prévia e claramente estudados e debatidos.
A experiência nos mostra que uma regulação açodada é usualmente inconsistente e leva à produção de normas sem sentido ou anacrônicas. Muitas vezes, gera ou aumenta distorções no funcionamento do mercado regulado, causando mais mal do que bem.
Trazendo esse aprendizado para nosso mercado de jogos e apostas, cabe dizer que, por mais compreensível que seja a expectativa dos agentes econômicos interessados em operar e a do próprio governo em iniciar a arrecadação dos valores que lhe serão devidos – a título de preço de outorga, taxa de fiscalização e tributos sobre a atividade –, uma boa regulação exige muito conhecimento ex ante do setor regulado e demanda uma cuidadosa seleção e aplicação de métodos e técnicas específicas.
Tentativas de abreviar essa trajetória – por exemplo, via replicação ou adaptação de modelos estrangeiros – devem ser evitadas a todo custo. Antony Cabot, renomado professor da Universidade de Nevada, Las Vegas, nos ensina que uma das ilusões mais comuns que orientam países no início da implementação da regulação de jogos e apostas é a de que reproduzir ou replicar modelos regulatórios adotados em outros países é uma boa opção [1]. Como cada país tem sua economia, sua cultura jurídica e até mesmo um tipo e um nível de interação de seus cidadãos com o jogo, o que funciona bem na regulação em Las Vegas, Macau ou Reino Unido pode não funcionar no Brasil.
Isso não significa, nem de longe, que a concepção e implementação da regulação das apostas online deve desconsiderar o que ocorre no mundo e criar algo totalmente novo. Pelo contrário: conhecer a experiência de outros países é essencial – tanto para que se possa saber o que funcionou e o que não funcionou, quanto para saber por que o resultado foi positivo ou negativo. Ocorre que esse benchmark é apenas o ponto de partida de um longo processo de construção da regulação.
A literatura especializada em regulação de jogos e apostas nos mostra que a implementação da regulação em países onde essa atividade passou a ser permitida costuma esbarrar, isolada ou cumulativamente, em quatro tipos de falhas.
A primeira delas é a falha de conhecimento. Ela ocorre quando o Estado não possui suficiente conhecimento sobre a dinâmica de funcionamento do mercado regulado, não sabe identificar os objetivos que precisa alcançar com a regulação deste ou daquele tema específico para que o mercado funcione bem ou melhor ou, ainda, não sabe identificar os meios e a forma de enfrentar determinado problema.
Já a segunda é a falha de instrumento, que ocorre quando a lei ou a regulamentação adotada pelo órgão regulador ou supervisor são inapropriados ou ineficazes para resolver determinado problema. Nesse caso, o que costuma ocorrer é que, além de não resolver o problema, o ato do poder público acaba levando ao seu agravamento – ou, ainda, à criação de outro problema, de igual ou maior intensidade.
Por sua vez, a terceira falha é a de implementação. Aqui, embora o Estado conheça o problema e aplique as ferramentas que, em tese, seriam adequadas, o resultado desejado simplesmente não é alcançado. Isso pode ocorrer não apenas por erros em detalhes da implementação – como prazos inadequados e uso de sistemas que, pelo seu dimensionamento, se revelam insuficientes para dar conta de determinada demanda –, como também porque o mercado acaba reagindo de forma diferente daquela originalmente imaginada pelo Estado.
Por fim, a quarta falha é a de motivação. Ela ocorre quando o Estado deixa de atuar ou tem sua ação enviesada por elementos externos à regulação, como a captura política ou econômica.
Em regulação, não há gênios; há, isto sim, técnica e método. Se bem dominados e manejados, a técnica e o método criam as condições para que o objetivo maior da regulação – a saber, o bom ou melhor funcionamento de determinado mercado – seja efetivamente cumprido. Mas, quando ignorados ou preteridos, o resultado é, via de regra, negativo ou até desastroso.
A partir de tudo o que foi exposto, é possível afirmar, sem qualquer dúvida, que, antes de iniciar seu processo de regulação de apostas online – por meio de edição pura e simples de normas complementares às diretrizes gerais estabelecidas na Lei nº 14.790, de 2023 –, o Poder Executivo precisa definir o que, como e quando será buscado com essa regulação. Se assim não for, são grandes as chances de que nosso processo incorra em uma ou mais falhas de regulação apontadas na literatura especializada.
Em termos mais técnicos, pode-se afirmar que o que o mercado brasileiro de apostas online efetivamente precisa, em primeiro lugar, é conceber um sistema regulatório consistente e adequado, que reflita nossas especificidades. De acordo com a teoria da regulação, trata-se do conjunto de diretrizes, regras, procedimentos, práticas e instituições que conformam a intervenção do Estado em determinado mercado ou atividade econômica. Esse é que deve ser, de fato, o ponto de partida para a regulação do apostas online.
A questão é saber como esse sistema deve ser estruturado. Mas isso é assunto para o próximo artigo dessa série.
***
[1] CABOT, Anthony; PINDEL, Ngai; WALL, Brian (Org.). Regulating Land-Based Casinos: polices, procedures and economics. Las Vegas: UNLV Gaming Press, 2018.
Fonte: BNLData